A cultura da Inglaterra em duas cores: reggae, punks e romance pós-colonial Foto / Jane Simon

A cultura da Inglaterra em duas cores: reggae, punks e romance pós-colonial

A valorização das culturas negra e afro-americana tornou-se ponto central nas discussões contemporâneas. Ao mesmo tempo, gera uma crítica constante, principalmente por parte de algumas vozes brancas, aos movimentos que defendem a cultura black. No meio de tantas contradições e ambiguidades, fiquei outro dia pensando: o que seria da Inglaterra, berço e ponta de lança das inovações dos jovens a partir dos anos 1960, sem a influência dos caribenhos que desembarcaram por lá?

O Caribe é esse outro mundo tão distante e tão presente na história da Inglaterra. É um universo de culturas complexas e riquíssimas, forjado a partir de ilhas que foram, em grande parte, colônias inglesas, francesas e holandesas. Para os britânicos, a chegada dos caribenhos à Inglaterra após a Segunda Guerra Mundial simbolizou não só a mudança ou começo do fim de um Império, mas também a presença local de um legado cujos ecos se fazem sentir até hoje na música e na literatura.

A primeira leva significativa de imigrantes caribenhos chegou ao Reino Unido em 1948, no navio SS Empire Windrush, o que resultou no surgimento da “diáspora moderna”. É evidente a alusão à fuga dos hebreus e do Moisés do Egito. Assim, em um movimento irônico e paradoxal, os antigos colonos passaram a ser, de certo modo, “colonizados” de volta, agora em termos culturais. São os ingleses que começam a redescobrir a riqueza de outras culturas de suas antigas colônias.

A imigração caribenha para a Inglaterra intensificou-se após 1962, quando a Jamaica alcançou a independência. Com ela, vieram novas influências que moldaram o cenário cultural britânico da atualidade. Como notou Stuart Hall, os movimentos migratórios não devem ser vistos apenas como “fugas” ou “deslocamentos” de povos em busca de melhores condições de vida. Trata-se de uma transposição de visões de mundo e de formas de se expressar em um novo país.

Para Hall, a identidade não é algo fixo, mas algo que se constrói e se reconstrói constantemente. Imagine isso para os britânicos que, historicamente, se conceberam como uma ilha separada do continente europeu. A diáspora caribenha foi um processo de reinvenção para os imigrantes e para a sociedade britânica em si. Criou a multiplicidade de identidades que questionam noções de pertencimento e de ser autêntico.

Sons do reggae

É precisamente a música, um dos campos mais evidentes de interação cultural, que ilustra como a identidade britânica pós-Segunda Guerra foi profundamente reconfigurada pelo Caribe. O reggae de Bob Marley e o imaginário “rude boy” associado ao movimento jamaicano ganharam, nos anos 1970, um espaço cada vez mais significativo nas ruas e nas cabeças dos jovens. A partir desse choque cultural, surgiram transformações radicais na música popular, nas danças e na maneira de se ver o mundo.

A popularidade do reggae foi uma das manifestações. Os punks, por exemplo, não ficaram imunes à onda musical que chegava da Jamaica. Grupos como The Clash, imortalizados por seu rock enérgico com ska e reggae, são prova de que a juventude britânica reconhecia no som jamaicano não apenas um novo estilo musical, mas uma maneira de entender o conflito, a rebeldia e a resistência no país em crise. Há uma cena no filme “One Love” (2024) que mostra Marley num show do Clash.  

A história do movimento Two Tone, que envolveu bandas como The Specials, The Beat e Bad Manners, é ainda mais interessante, pois foi a fusão de elementos do ska jamaicano com o punk britânico. O resultado é algo genuinamente híbrido e irreverente, que fez a cabeça da geração da cantora Amy Winehouse, que gravou a canção “Monkey Man” dos Specials. As bandas, vezes compostas por integrantes brancos e negros, representaram um marco na tentativa de superar as divisões raciais tradicionais.

Foi para pensar esses choques culturais na Inglaterra que Paul Gilroy explorou seu conceito de “Atlântico Negro”. Segundo ele, a diáspora africana no Ocidente não é apenas uma história de perda, mas de reinvenção e reintegração de culturas em constante movimento. Manifestações como A música e a literatura da diáspora, diz o pensador, criaram um espaço transnacional desse “Atlântico Negro”, que seria a convergência entre os mundos da África, da Europa e das Américas.

A conexão da Inglaterra com as ex-colônias proporciona uma constante troca e fusão de culturas. Prova disso está no encontro de duas cores (Two Tone) do reggae com punk nos anos 1970 e 1980. A classe trabalhadora inglesa se identificou com os imigrantes — hoje quer a expulsão deles. Trata-se de um fenômeno que transbordou para a literatura e o cinema ingleses nos últimos 40 anos.

Ainda na música, a cultura da diáspora caribenha cresceu na cidade inglesa de Bristol, onde surgiu o “trip hop” nos anos 1990 de Massive Attack e Portishead, com altas doses de música dançante, introspectiva e eletrônica. É desse caldo musical que se desenvolveu, por outros caminhos, o fenômeno mundial do Radiohead. Os ingleses provaram que o mundo é mesmo um encontro de cores e que não existe purismos ou tradições intocáveis numa cultura — isso está apenas na imaginação de conservadores.

Literatura da diáspora

Interessante que a literatura inglesa foi “contaminada” pelos descendentes da diáspora do Caribe: V.S. Naipaul (que nasceu em Trindade e Tobago e ganhou o Prêmio Nobel de Literatura), Zadie Smith (filha de mãe jamaicana) e Caryl Phillips (nascido na Ilha de São Cristovão). São autores que se tornaram mundialmente conhecidos. Eles, por meio de suas obras, exploraram as complexas questões de identidade, pertencimento e cicatrizes do colonialismo no contato com a vida na Inglaterra.

Décio Torres Cruz
Décio Torres Cruz (Edufba, 347 páginas), de Décio Torres Cruz

Uma ótima introdução a esses autores é o livro de “Literatura (pós-colonial) Caribenha de Língua Inglesa” (2016), de Décio Torres Cruz. O autor analisa as obras de Derek Walcott, Jamaica Kincaid, Naipaul e Phillips. Trata-se de uma leitura brasileira desse universo muito rico da produção literária na Inglaterra contemporânea. Aquela ilha é muito mais do que o saudosismo cultural em torno de William Shakespeare e dos Beatles, que se tornaram fenômenos globais de culto e de consumo.

A literatura diaspórica inglesa representa, para usar as palavras de Hall, um corpo social híbrido, uma mistura de diferentes tradições que questiona constantemente o que é ser britânico e o que é ser caribenho — e indiano. Esses escritores e escritoras expandiram o repertório da literatura inglesa. A Inglaterra não é mais uma nação homogênea (ou só foi um dia na imaginação de seus ideólogos). Está mais para um espaço de contaminação cultural, sem distinção de fronteiras entre o nativo e o estrangeiro.

O que seria da Inglaterra sem a presença da diáspora caribenha? A resposta é que ela não teria provavelmente se tornado o caldeirão cultural vibrante dos últimos 40 anos. Viveria das glórias e do cortejo de horrores dos períodos elizabetano e vitoriano. As contribuições caribenhas moldaram a música, a literatura e a sociedade. Seria impensável entender a identidade contemporânea do país sem considera a multiplicidade de influências que emergem da diáspora caribenha.