Estádio de futebol com torcida única é o cemitério do futebol

Estádio de futebol com torcida única é o cemitério do futebol

A frase não é minha. Foi dita pelo jornalista Pablo Kossa num programa de debates que eu ouvia pelo rádio. Sim, sou um dos últimos moicanos que ainda ouvem programas radiofônicos. Gosto do jornalismo esportivo. Curto futebol, mas não sou fanático. O meu “time do coração” é o Goiás Esporte Clube, uma paixão que perdura desde a infância. Eu sei, ninguém é perfeito. O importante é ter saúde.

Bola pra frente. Fiquei sabendo que o Estádio Serra Dourada voltará a receber jogos do futebol profissional após um longo período fechado. Houve um tempo em que chegou a ser considerado um dos mais belos e modernos estádios do país. Em particular, as condições impecáveis do gramado eram sempre exaltadas. Pelo que se sabe atualmente, a estrutura física encontra-se sucateada, e o campo já não é mais o “tapete” elogiado de priscas eras.

Lembro-me perfeitamente da primeira vez que entrei no Serra Dourada. Foi meu pai quem me levou. Eu tinha 10 anos. Engraçado, por mais estranho que pareça, quanto mais o tempo passa desde a sua morte, mais percebo o quanto compartilhamos momentos felizes, em contraponto aos arranca-rabos inerentes ao inevitável choque entre gerações.

Inaugurei a ida aos campos de futebol assistindo a uma partida entre o time do Goiás e um adversário cujo nome, lamentavelmente, não me recordo. Já faz muito tempo. 1975, para ser exato, ano da inauguração do Serra. O jogo sucedeu à noite. Recordo-me do êxtase por que passei ao caminhar pelo fosso de concreto que dava acesso às arquibancadas e me deparar com a iluminação portentosa que dava cores vívidas ao estádio lotado e ao gramado impecável. Parecia uma entrada triunfante no céu. Foi uma das cenas mais significativas que vivi, pois abria o portal imagético que dava acesso irrestrito à fantasia e ao encantamento.

O que sucedeu, então, foi mais do que amor à primeira vista. Foi o início de um hábito que cultivo até hoje, apesar dos aborrecimentos com o meu time predileto e com os seus gestores prepotentes. Desde aquele momento mágico propiciado por meu pai, jamais deixei de frequentar estádios de futebol, mesmo acometido pelos inúmeros perrengues que envolvem os eventos com grandes públicos. Chateações que vão desde o atrito com flanelinhas malandros até o medonho espetáculo de selvageria proporcionado por brutamontes que se autodenominam “torcedores organizados”.

Desorganização. Apesar dos vultosos investimentos financeiros, o futebol brasileiro continua muito desorganizado. Tive o privilégio de frequentar o Estádio Serra Dourada numa época gloriosa, quando aquela praça esportiva era feliz e democrática, recebendo simultaneamente as torcidas do time mandante e do time visitante. Dividiam-se as arquibancadas em duas metades, e cada torcida ocupava um dos lados. A disputa de cores e de vozes era um espetáculo emocionante à parte.

A coisa toda funcionava relativamente bem, até advirem as contendas entre os torcedores de má índole dentro e fora das dependências do estádio. Verdadeiras rinhas de bárbaros. A polícia prendia. A polícia soltava. Ninguém era efetivamente processado, muito menos impedido de continuar frequentando os jogos. Por fim, o Ministério Público vetou a realização das partidas de futebol com a presença simultânea de duas torcidas. Tal status permanece até o momento, e muitos acreditam que não será alterado, tendo em vista os temores de que a violência volte a grassar, ainda que protagonizada por uma minoria de sacripantas.

Tampa do caixão. Coincidência ou não, depois que as medidas segregacionistas passaram a permear a maior parte das praças esportivas Brasil afora, ficou mais caro frequentar os estádios e mais sofrível também, tendo em vista a qualidade ruim do futebol apresentado nos últimos anos. As coisas pioraram a olhos vistos. Apesar de exportar jogadores talentosos para vários países onde a organização dessa modalidade esportiva é mais profissional, o Brasil vive tempos de vacas magras, muitas delas no brejo. Contentamo-nos em nos vangloriar por um passado longínquo de soberania futebolística. O que não faltam são cabeças-de-bagre com tatuagens aberrantes, cabelos descoloridos, sobrancelhas feitas e um futebol medíocre que mantém o sarrafo da qualidade soldado nos patamares mais aviltantes.

A impunidade sempre foi um estímulo para baderneiros, sociopatas e criminosos contumazes. Tanto assim que, apesar das restrições, os brucutus continuam a digladiar dentro e fora dos estádios, independentemente da cor da camisa. Porque não são torcedores. São questões de gangues. São criminosos que prejudicam a maioria de aficionados pelo futebol, os quais repelem a violência. Com a tecnologia disponível nas arenas esportivas, seria plenamente viável identificar os encrenqueiros, enquadrá-los sob o cajado da lei e bani-los das praças esportivas, só para começar. Por que cargas d’água isso não acontece, eu não saberia dizer. Provavelmente, por desinteresse ou por incompetência dos agentes envolvidos: as agremiações esportivas, as federações e a famigerada CBF.

Apesar de favorável, não boto fé que os áureos tempos de futebol no Serra Dourada lotado retornarão com a presença simultânea e civilizada das duas torcidas. Pelo que se percebe atualmente na vida cotidiana e nas ilusórias redes sociais da internet, vigora o recrudescimento da intolerância de toda ordem e a cultura do ódio. A tendência, portanto, é a premissa de torcida única no Estádio Serra Dourada. Ou seja, um atestado de incompetência do Estado e da sociedade organizada para lidar com a violência urbana. Perdemos, playboys.

Muitas vezes me pergunto por que ainda frequento estádios de futebol. Esperança vã? Paixão cega? Simples idiotia? Em termos futebolísticos, ganhar ou perder não muda em nada a vida do torcedor. Mesmo assim, a gente segue envolto pela paixão e pela fantasia, tomado por uma espécie de encantamento hereditário que se transmite geração após geração, de pais para filhos, numa espécie de fanatismo domesticado consentido. Poderia ter encontrado uma definição melhor para isso. Mas não dá para misturar paixão e ódio, pois são sentimentos que simplesmente não conversam entre si.

Eberth Vêncio

Eberth Franco Vêncio, médico e escritor, 59 anos. Escreve para a “Revista Bula” há 15 anos. Tem vários livros publicados, sendo o mais recente “Bipolar”, uma antologia de contos e crônicas.