Entre narrativas densas e visuais marcantes, “O Diabo de Cada Dia” (2020), dirigido por Antonio Campos, emerge como um estudo profundo das ambiguidades morais que permeiam a alma humana. Amparado por uma narração em off — conduzida pelo próprio Donald Ray Pollock, autor do livro homônimo que inspira o filme —, a produção equilibra habilmente dois eixos temporais, revelando um panorama entre passado e presente sem comprometer a coesão da história. Essa abordagem, longe de ser apenas um recurso narrativo, transforma-se em um elo que guia o espectador pela complexidade emocional e psicológica das personagens.
A escolha de Pollock como narrador é um gesto metalinguístico que reforça a ligação entre literatura e cinema, destacando o respeito de Campos pelo material original. Esse recurso, que poderia facilmente descambar em excessos explicativos, aqui se torna um fio condutor essencial para a absorção de uma trama repleta de nuances. Contudo, o roteiro não se furta a deixar lacunas, optando por uma narrativa que provoca o público a construir suas próprias interpretações. Essa abordagem aberta dialoga diretamente com a essência literária da obra, incentivando uma leitura subjetiva dos eventos e das intenções por trás de cada ato.
No cerne da narrativa, “O Diabo de Cada Dia” explora os efeitos corrosivos de uma religiosidade distorcida e o impacto das escolhas individuais no destino coletivo. O filme inicia com a história de Willard Russell (Bill Skarsgård), um ex-combatente atormentado pelos horrores das guerras que enfrentou. Ao retornar a Knockemstiff, Ohio, Willard tenta reconstruir sua vida e encontra em Charlotte (Haley Bennett), uma jovem gentil e devota, um refúgio para sua alma perturbada. Contudo, a aparente serenidade do casal se desfaz quando Charlotte é diagnosticada com câncer terminal. Desesperado, Willard recorre à fé de forma obsessiva, culminando no sacrifício brutal do cachorro de seu filho, Arvin, como tentativa de barganha divina. A morte de Charlotte e o subsequente suicídio de Willard rompem definitivamente o frágil equilíbrio familiar, deixando Arvin aos cuidados da avó Emma.
Dez anos depois, Arvin (Tom Holland) se torna o centro da narrativa, carregando as cicatrizes de uma infância marcada pela violência e pela perda. A introdução do reverendo Preston Teagardin (Robert Pattinson) expande o retrato da hipocrisia religiosa. Teagardin, com sua presença carismática e discursos eloquentes, rapidamente conquista a comunidade, mas sua fachada moral encobre intenções sórdidas. A relação predatória do pastor com Lenora (Eliza Scanlen), criada por Emma como irmã de Arvin, culmina em tragédia quando a jovem, ao descobrir-se grávida e rejeitada por Teagardin, opta pelo suicídio para evitar cometer um pecado ainda maior.
Campos utiliza o cenário desolado do Meio-Oeste americano como um espelho para a degradação moral de seus personagens. O isolamento geográfico amplifica a sensação de desesperança, enquanto as paisagens rurais servem de palco para atos de violência que refletem a fragilidade espiritual dos envolvidos. O diretor não poupa o espectador de cenas perturbadoras, mas evita a gratuidade, construindo uma atmosfera que transcende o horror e se aproxima de uma análise existencial.
A atuação de Robert Pattinson se destaca como um dos pontos altos do filme. Seu retrato de Teagardin é ao mesmo tempo repulsivo e fascinante, encapsulando a ambiguidade que permeia toda a narrativa. Tom Holland, por sua vez, entrega um desempenho contido, mas carregado de emoção, consolidando Arvin como um protagonista cuja luta interna é tão intensa quanto os conflitos externos que enfrenta.
“O Diabo de Cada Dia” é, acima de tudo, um estudo sobre a capacidade humana de sucumbir às trevas e as consequências dessa rendição. Sob a direção precisa de Antonio Campos, o filme se desdobra como uma narrativa rica em camadas, explorando questões de fé, corrupção e redenção. A voz de Donald Ray Pollock, tanto no livro quanto no filme, ecoa como um lembrete sombrio: o mal está sempre à espreita, e é preciso constante vigilância para combatê-lo.
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