Baseado em um livro que vendeu 13 milhões de exemplares, um dos filmes mais aguardados do último ano acaba de estrear no Disney+ Divulgação / Disney +

Baseado em um livro que vendeu 13 milhões de exemplares, um dos filmes mais aguardados do último ano acaba de estrear no Disney+

Verdadeiras mães não são exatamente racionais — e muito menos civilizadas. Depois de vencer as metafísicas preocupações quanto à consistência dos detritos fisiológicos; suportar as agonias da adaptação à escola, o primeiro ambiente em que os filhos passam a responder por suas próprias atitudes com alguma autonomia; domar a batalha inglória e quase trágica da adolescência; lidar com a incerteza quanto a ter feito um bom trabalho, observando de longe (mas não muito) o desempenho profissional dos pimpolhos, torcendo e rezando para que se firmem na carreira de uma vez por todas, as mães gozam de algum respiro para, afinal, cuidar de si mesmas e fazer boa parte das coisas que foram protelando ao longo da vida.

As dores da maternidade tornam-se ainda mais agudas quando a vida acha de aprisionar uma mulher insubordinável, soberana de si, bem-sucedida e algo angustiada num casamento infeliz, caótico, até que tudo vem abaixo da maneira mais brutal. “Canina” não chega a tanto, mas retrata com impressionante crueza a metamorfose de alguém  diante do que considerava seu ponto máximo. Versátil, Marielle Heller alcança as notas altas e baixas, sombrias até, da vida de uma mãe que se anula sem perceber, convicta de ter feito a escolha certa ao deixar para trás carreira, reconhecimento, aquele hábito tão libertador de fazer suas coisas a seu tempo, como se o universo inteiro dependesse dela, mas é tomada pelo arrependimento mais implacável. 

O roteiro de Heller, adaptado de “Nightbitch” (“cadela da noite”, em tradução literal; 2021), o romance de estreia da americana Rachel Yoder, abusa do realismo fantástico para falar de uma figura que nem mesmo tem um nome. Mãe, como é chamada a personagem de Amy Adams, era uma artista plástica imersiva, como ela gosta de dizer, cuja jornada profissional inclui exposições em espaços mundo afora, até ter conseguido abrir sua própria galeria. Desde que nasceu Filho, agora com dois anos, tudo isso é passado, e só nos damos conta de sua frustração quando, numa cena na abertura, Mãe encontra uma antiga colega entre as seções de um supermercado.

A outra quer saber se ela está realizada em sua nova configuração, passando os dias em afazeres domésticos, isolada do glamour de banquetes estéticos — essa última parte, por óbvio, a mulher não diz. Mãe parece já ter na ponta da língua um discurso verborrágico, porém sincero, acerca da injustiça da condição feminina pós-parto, assinalando o medo de nunca mais ser inteligente, feliz ou magra, e quase nos empolgamos com essa primeira reviravolta, apenas para a diretora revelar que este era o fluxo de pensamento de sua protagonista falando mais alto. No plano real, ela obriga-se a dizer que “ama ser mãe”, e Heller leva o filme para a casa da família num subúrbio no sul da Califórnia, onde a rotina de trocar fraldas, preparar refeições, fazer a faxina e manter Filho a salvo do tédio é um massacre.

A visita de Mãe e Filho à biblioteca da cidade, para assistir à apresentação de um sujeito barbudo e cabelos desgrenhados entoando canções infantis sobre crianças felizes que sabem se comportar é um bem-vindo respiro cômico em “Canina”, e também o momento em que Heller aproveita para denunciar hipocrisias do tão exótico círculo das mães. Mulheres achegam-se da personagem central interessadas somente pelo fato de estarem todas na categoria de seres humanos que já deram à luz, ou seja, teriam todas os mesmos gostos e dedicar-se-iam às mesmas atividades.

Mary Holland, Zoë Chao e Archana Rajan fazem suas participações protocolares, a narrativa volta ao leito, e agora Mãe comenta com Marido, que volta de uma viagem a trabalho, as mudanças pelas quais vem passando. Dias antes, Filho, interpretado pelos espertíssimos gêmeos Arleigh Patrick e Emmett James Snowden, descobrira em Mãe um tufo de pelos no cóccix e um rabicho irrompe de uma bolha. Uma noite, depois que Marido, de Scoot McNairy, torna a se ausentar, ela sai pela rua como Sarama, a cadela de Indra, o deus do céu no hinduísmo, uivando, dentes afiados à mostra, acompanhando uma matilha de vira-latas, malteses, berneses e poodles.

Heller tenta uma explicação para o mimetismo de anti-heroína acrescentando à trama sua mãe, em flashbacks nos quais a personagem de Adams diz em off que seu nascimento pode ter feito gorar o sonho de virar cantora daquela mulher rústica, mas talentosa. Kerry O’Malley é uma boa aquisição ao elenco, malgrado semanticamente não contribua muito. Com efeito, a dupla natureza de Mãe é o que menos chama atenção nessa fábula surrealista sobre paranoias maternais de mulheres cuja estabilidade emocional fragmentar-se-ia com ou sem mamadeiras e cueiros em sua estrada para a glória inútil.

Filme: Canina
Diretor: Marielle Heller 
Ano: 2024
Gênero: Comédia/Terror
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★
Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.