Na história da literatura, as influências entre autores de diferentes épocas e lugares são inevitáveis, refletindo a riqueza de diálogos que atravessam fronteiras e estilos. Todo grande escritor é, em alguma medida, herdeiro daqueles que vieram antes, seja por assimilação ou resistência. No caso dos autores modernos, essa troca se torna ainda mais evidente, à medida que o mundo literário se abre para novas linguagens e formas de expressão, ampliando o repertório criativo de escritores que olham para seus predecessores em busca de inspiração. A literatura se torna uma grande conversa que não apenas atravessa gerações, mas também ajuda a definir o que entendemos por tradição e inovação.
É aí que Marcel Proust e Cyro dos Anjos se encontram. Mesmo que separados por um oceano e contextos culturais bastante distintos, ambos compartilham uma sensibilidade particular, marcada pela introspecção e construção de personagens cuja percepção de si e do mundo é mediada pela memória e pelo tempo. Essa afinidade estilística entre os dois demonstra como a influência pode ser frutífera e criativa, conduzindo a obras que, mesmo dialogando entre si, conseguem manter suas singularidades. A assimilação do estilo proustiano por Cyro dos Anjos em “O Amanuense Belmiro” não representa só imitação, mas uma reelaboração pessoal e única da técnica literária que Proust consagrou em “Em Busca do Tempo Perdido”.
Como destacou T. S. Eliot em seu ensaio “Tradição e talento individual”, “nenhum poeta, nenhum artista de qualquer arte, tem seu sentido completo sozinho. Seu significado, sua apreciação, é a apreciação de sua relação com os poetas e artistas mortos.” Cyro dos Anjos exemplifica essa ideia ao construir uma obra que se vale de influências para se afirmar como expressão autêntica de seu tempo e lugar. A influência de Proust, longe de limitar o escritor brasileiro, amplia seu campo de visão, permitindo que ele explore a experiência do indivíduo com a profundidade e a complexidade características do modernismo.
Em “O Amanuense Belmiro”, Cyro dos Anjos nos oferece uma narrativa profundamente introspectiva e melancólica, centrada na figura de Belmiro Borba, um homem de meia-idade que vive em Belo Horizonte, nos anos 30 do saudoso século 20. O romance, escrito como diário, acompanha a vida cotidiana desse modesto funcionário público, um amanuense, cuja rotina burocrática contrasta com seus pensamentos e reflexões filosóficas sobre a existência, o amor, a política e a própria literatura. Através do registro minucioso de seus dias, Belmiro revela um mundo interior rico, mas permeado por um sentimento de inadequação e vazio.
O enredo é fragmentado, refletindo a natureza introspectiva e errática da mente de Belmiro. Ele narra episódios triviais, como conversas com amigos e colegas, almoços solitários em restaurantes modestos e passeios pela cidade, enquanto reflete sobre questões existenciais profundas. Uma das principais linhas envolve seu sentimento por Marta, uma mulher por quem tem um amor platônico e nunca realizado. Ao mesmo tempo, ele se vê em uma amizade ambígua com Carmen, que representa a possibilidade de uma vida menos solitária, embora não completamente satisfatória. A indecisão de Belmiro e sua incapacidade de se comprometer emocionalmente geram um estado de apatia, comum nos protagonistas da literatura modernista.
A obra traz um retrato detalhado da sociedade brasileira daquela época, evidenciando as tensões políticas e sociais do período. As discussões que Belmiro tem com seus amigos, especialmente Américo e Ribeiro, refletem as incertezas de uma geração que vivia as consequências da Revolução de 1930 e os primeiros anos do governo de Getúlio Vargas. Mesmo imerso nessas preocupações políticas e sociais, o protagonista mantém uma distância irônica e cética em relação às grandes transformações ao seu redor. Esse afastamento reflete sua dificuldade em encontrar um lugar no mundo, evidenciando a dimensão existencialista do romance.
“O Amanuense Belmiro” é um romance sobre o isolamento e a impotência diante da vida. Embora Belmiro observe atentamente o mundo à sua volta, ele parece incapaz de se integrar ou de agir com decisão. Sua alienação não é resultado de um desinteresse puro, mas de uma sensibilidade aguda, que o faz perceber as complexidades e as ambiguidades da vida moderna. Ao longo da narrativa, o leitor é levado a simpatizar com esse protagonista aparentemente comum, cuja vida interior, repleta de reflexões profundas, se contrapõe à superficialidade da existência cotidiana.
A relação entre Marcel Proust e Cyro dos Anjos é frequentemente estabelecida por críticos e estudiosos, com base em similaridades que, à primeira vista, parecem óbvias. Ambos os autores são conhecidos por suas narrativas introspectivas, onde o fluxo de consciência e as digressões sobre a memória e o tempo ocupam papel central. Proust, em “Em Busca do Tempo Perdido”, explora a vida interior de seus personagens, traçando, por meio de associações sensoriais, as complexidades da memória. Já Cyro dos Anjos, em “O Amanuense Belmiro”, adota um tom mais contido e uma escala modesta, mas não menos significativa, ao construir um protagonista que se volta para dentro de si e, ora sim, ora não, está preso ao passado, como é com os personagens proustianos.
A comparação entre os dois autores nem sempre faz jus às particularidades de suas respectivas obras. É verdade que Cyro foi profundamente influenciado pelo estilo proustiano, especialmente no que diz respeito à atenção ao detalhe e à fluidez temporal. Mas, enquanto Proust lança mão de uma prosa longamente elaborada para reconstruir o mundo através da memória, Cyro dos Anjos mantém seus pés mais firmemente no chão da realidade. A memória em “O Amanuense Belmiro” não é uma reconstrução epifânica do passado, mas uma recordação melancólica, reflexão sobre o que poderia ter sido e nunca foi. Há em Belmiro Borba uma resignação e aceitação de sua condição que diferem das viagens emocionais intensas de Proust.
Embora as influências sejam claras, a relação entre os dois tende a ser exagerada quando não se leva em consideração o contexto brasileiro e a própria visão de mundo de Cyro dos Anjos. Proust escreve sobre a alta sociedade francesa, suas dinâmicas de poder e as complexidades da vida aristocrática, enquanto Cyro concentra-se na classe média burocrática de Belo Horizonte, com uma perspectiva mais limitada, porém mais próxima das realidades brasileiras. O tom de “O Amanuense Belmiro” é seco, resignado, contrastando com o lirismo e a tônica emocional da obra proustiana. O que nos resta é a percepção de uma influência enriquecedora, mas que não dilui a originalidade e o caráter nacional da obra de Cyro dos Anjos.
No ensaio “Estratégia”, Antonio Candido oferece uma leitura criteriosa de “O Amanuense Belmiro”, problematizando a comparação recorrente entre Cyro dos Anjos e Marcel Proust. Candido reconhece que a influência proustiana sobre o autor mineiro é evidente, especialmente no tratamento da memória e na construção do tempo narrativo, mas ele sublinha que essa semelhança não deve ser simplificada a ponto de ofuscar a originalidade de Cyro, especialmente no que tange ao contexto brasileiro e à perspectiva existencial que ele traz ao romance. Para Candido, a proximidade entre os dois não deve ser vista como imitação, mas como uma reelaboração criativa, em que Cyro adapta a introspecção proustiana à realidade de um amanuense perdido na burocracia e na rotina cotidiana de uma cidade provincial.
Uma das principais observações de Candido é que, enquanto Proust se vale de uma memória associativa e sensorial, Cyro utiliza a introspecção de maneira mais contida. Em “Estratégia”, o crítico ressalta que, no universo de Belmiro Borba, o passado não é glorificado ou revivido com a mesma intensidade que em “Em Busca do Tempo Perdido”. Em vez disso, a recordação no romance brasileiro tem um caráter prosaico e resignado, refletindo a condição de homem comum, preso a uma vida monótona e sem grandes aspirações. Candido argumenta que a nostalgia de Belmiro não o transporta para um tempo idealizado, só reforça sua alienação diante de uma realidade que ele não pode, ou não quer, mudar.
Antonio Candido defende que a insistência em ver Cyro dos Anjos como uma versão brasileira de Proust subestima as especificidades culturais e sociais presentes em “O Amanuense Belmiro”. A obra de Cyro é essencialmente brasileira, retratando as inquietações de um homem que não encontra saída na contemplação de sua memória, mas apenas uma reafirmação de sua impotência diante da vida. Candido nos convida a ler Cyro não como um reflexo do modernismo europeu, mas como um autor que, ao se apropriar de técnicas estilísticas estrangeiras, criou uma obra enraizada no Brasil e em sua realidade.
“O Amanuense Belmiro” é uma das joias da literatura brasileira. A maestria de Cyro reside na sua capacidade de transformar uma vida aparentemente ordinária em matéria literária de primeira grandeza. Introspectivo, o autor nos conduz pela mente de Belmiro, revelando nuances de uma existência marcada pela monotonia, mas também pelo universo interior de reflexões, sensações e sonhos. O romance não apenas retrata a realidade de uma classe média burocrática e sua alienação, mas transcende as limitações do contexto histórico para tocar em questões universais, como a busca pelo sentido e o peso das decisões não tomadas.
Ler “O Amanuense Belmiro” é uma experiência repleta de sensações sutis e aprendizados que valem a pena. O leitor se depara com uma narrativa que, mesmo contida, abre espaço para uma meditação filosófica sobre o tempo, a memória e a condição humana. A escrita elegante aliada à sua sensibilidade faz com que nos identifiquemos com as angústias e dilemas do protagonista. Há no livro uma beleza melancólica que nos convida a refletir sobre nossas vidas, escolhas e significados que atribuímos ao passado. A obra oferece uma visão única do Brasil da década de 30, e é um prazer redescobrir a história e dinâmicas sociais daquele período sob o olhar de um protagonista tão contemplativo.
O maior aprendizado que “O Amanuense Belmiro” nos oferece é a compreensão de que, mesmo nas vidas comuns, há profundidades a serem exploradas. A solidão e a introspecção de Belmiro Borba, longe de afastar o leitor, o convidam a mergulhar em si mesmo e nas complexidades da vida. Ao final da leitura, somos deixados com a sensação de ter acompanhado um personagem que, ao tentar entender-se, ilumina aspectos fundamentais da experiência. Cyro, com habilidade, legou-nos uma obra que não só encanta, mas nos transforma, tornando “O Amanuense Belmiro” um livro essencial para qualquer leitor em busca de profundidade e beleza na simplicidade.
Como destacou Candido, o fato de ele ter lido “O Amanuense Belmiro” cinco ou seis vezes já é, por si só, um forte indicativo de sua profundidade e valor literário. Se um dos maiores críticos da nossa literatura encontrou tanto a explorar e revisitar na obra de Cyro dos Anjos, isso por si só já deveria ser razão suficiente para que todos os amantes da literatura se dedicassem às suas páginas. Cada leitura revela novas camadas e significados e reafirma o poder deste romance em capturar as sutilezas da alma humana e da vida. Aqueles que buscam uma obra capaz de oferecer prazer e reflexão encontrarão, em “O Amanuense Belmiro”, um companheiro de leitura inesgotável.