Delicadeza em forma de imagens: o romance que parece ter saído de uma pintura em rococó de Jean-Honoré Fragonard, na Netflix Christian Geisnaes / Netflix

Delicadeza em forma de imagens: o romance que parece ter saído de uma pintura em rococó de Jean-Honoré Fragonard, na Netflix

Num mundo alheio aos desvarios da modernidade digital, as elites do passado cultivavam o jogo das aparências e da manipulação como arte suprema, algo que Choderlos de Laclos imortalizou em “Ligações Perigosas” (1782). Essas intrigas literárias, revisitadas em adaptações como “Segundas Intenções” (1999) e “Justiceiras” (2022), continuam a ecoar, agora reinterpretadas sob uma nova perspectiva pelo cineasta Bille August em “Ehrengard: A Ninfa do Lago”. O filme, baseado em uma obra tardia de Karen Blixen, é uma sofisticada incursão nos desdobramentos emocionais e sociais de um universo aristocrático, traduzido em imagens que seduzem pela beleza e complexidade.

A parceria entre Bille August e seu filho, Anders Frithiof August, resgata a literatura dinamarquesa com um olhar delicado e intrépido. Aqui, a trama gira em torno de Cazotte, um pintor talentoso que se vê enredado em intrigas palacianas quando é convocado para uma missão incomum: instruir o jovem príncipe Lothar, herdeiro de um reino fictício, na arte da sedução. No entanto, sua relação com a dama de honra Ehrengard complica os planos, trazendo à tona paixões proibidas e interesses conflitantes.

Desde os primeiros quadros, o espectador é transportado para um cenário de tirar o fôlego, com montanhas monumentais que servem como prólogo visual para a narrativa intimista que se desenrola. A transição para os interiores opulentos de um palácio é marcada por uma cena emblemática: uma grã-duquesa posa para Cazotte em um vestido azul de seda, a tensão latente entre os dois culminando em um beijo roubado. A elegância com que August conduz essa sequência revela a essência do filme, onde desejo e decoro se entrelaçam em um balé cuidadosamente coreografado.

Sidse Babett Knudsen, como a grã-duquesa, confere à sua personagem uma profundidade fascinante, oscilando entre a vulnerabilidade e a autoridade. Sua interação com Mikkel Boe Følsgaard, que vive Cazotte, é repleta de nuances, capturando a dinâmica de poder e sedução que permeia o filme. A grã-duquesa, em sua busca por assegurar o futuro da dinastia, enxerga em Cazotte não apenas um artista, mas uma ferramenta para manipular o destino. Já Cazotte, dividido entre o dever e a paixão, vê-se atraído por Ehrengard, interpretada com charme delicado por Alice Bier Zanden. A jovem dama de honra emerge como um contraponto de pureza em meio ao cinismo aristocrático, uma presença que equilibra o tom da narrativa.

A adaptação de “Ehrengard” é também uma celebração visual. August utiliza cada quadro como uma pintura em movimento, explorando contrastes entre vastidões naturais e interiores ricamente decorados. A cinematografia captura a essência de uma época em que as aparências ditavam as regras, enquanto as emoções fervilhavam sob a superfície. Essa dicotomia está no cerne do filme, onde personagens mascaram intenções sob uma fachada de civilidade.

Embora o enredo se concentre nos jogos de poder e romance, a narrativa também reflete sobre questões universais, como a luta entre o desejo pessoal e as obrigações impostas pela sociedade. A figura de Cazotte é emblemática nesse sentido: um homem de talento singular que, apesar de suas ambições, é tragado por circunstâncias que escapam ao seu controle. Sua relação com a grã-duquesa e com Ehrengard revela as complexidades de um mundo onde o amor é muitas vezes moeda de troca.

Com um desfecho agridoce, “Ehrengard: A Ninfa do Lago” deixa o espectador refletindo sobre as ironias do destino. Cazotte, agora em Roma, aperfeiçoando sua arte, carrega consigo as marcas de suas escolhas e o peso das expectativas alheias. Sua jornada, entrelaçada às intrigas da realeza, é um lembrete eloquente de que mesmo em cenários de opulência, a condição humana é inevitavelmente frágil e contraditória.

Filme: Ehrengard: A Ninfa do Lago
Diretor: Bille August
Ano: 2023
Gênero: Comédia/Drama/Romance
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★