Esperança e canibalismo: Ethan Hawke revive a mais chocante história de sobrevivência já contada no cinema — agora na Netflix Divulgação / Touchstone Pictures

Esperança e canibalismo: Ethan Hawke revive a mais chocante história de sobrevivência já contada no cinema — agora na Netflix

A existência humana é um enigma que ultrapassa o simples ato de nascer. Entre milhões de possibilidades, uma única estrutura celular é escolhida para transformar a potencialidade em vida. Essa seleção carrega consigo mistérios da criação, que, mesmo em sua complexidade, seguem sem respostas definitivas. Vivemos um paradoxo: por mais que a vida seja repleta de adversidades, o desejo de preservá-la supera, quase sempre, qualquer tormenta. Até mesmo aqueles que optam por abandonar este plano reconhecem, de algum modo, o peso do erro que cometem. Independentemente da perspectiva — religiosa, filosófica ou pragmática — a vida se apresenta como um valor irrenunciável, cuja importância é unanimemente reconhecida. Contudo, sua grandiosidade não elimina o fato de que ela tem seus limites, sobretudo quando confrontada com dilemas extremos.

A análise da vida jamais pode ser isolada de outras dimensões da existência. É no confronto com situações extraordinárias que ela ganha novas camadas de significado. Sob certas circunstâncias, salvar-se pode ser visto como um ato de covardia, especialmente se isso implica um pacto com princípios que desafiam o próprio conceito de humanidade. Esse é o cenário que um dos maiores desafios éticos e filosóficos da história humana explora, com uma abordagem tão inquietante quanto fascinante. Nesse contexto, a vida não é apenas um presente; é um campo de batalhas morais, que nos força a encarar nossa vulnerabilidade e o preço que estamos dispostos a pagar pela sobrevivência.

Lançado em 1993, “Vivos” apresenta uma narrativa profundamente impactante, que transforma um episódio trágico em um convite à reflexão sobre a essência da vida e os limites da ética. Frank Marshall, conhecido por produções grandiosas, entrega aqui uma obra que vai além da estética, conduzindo o espectador a uma experiência visual e emocional hipnótica. O diretor utiliza a vastidão dos Andes como palco para uma história de luta e desespero, na qual a grandiosidade da paisagem contrasta com a pequenez humana diante de forças implacáveis. Mais do que um registro de fatos, o filme desafia o público a ponderar sobre a sobrevivência e suas implicações.

Baseado na tragédia real que envolveu 45 passageiros de um avião que caiu na Cordilheira dos Andes, o roteiro de John Patrick Shanley reconstrói com precisão o sofrimento extremo enfrentado pelos sobreviventes. Os primeiros dias após o acidente são marcados pela esperança de resgate, mas, à medida que o tempo avança, as condições adversas se tornam insuportáveis. O frio incessante, as feridas que se agravam e a escassez de alimento forçam decisões inimagináveis. A narrativa, apoiada em atuações intensas e efeitos visuais convincentes, cria um clima de opressão que prende o espectador.

Entre os personagens, destacam-se Roberto Canessa, interpretado por Josh Hamilton, e Nando Parrado, vivido por Ethan Hawke. Enquanto Canessa tenta manter a organização do grupo, Parrado emerge como a figura central no momento mais controverso da trama. Frente à necessidade de energia para sobreviver, a única solução encontrada é recorrer à carne dos companheiros mortos, enterrados na neve. Essa decisão, embora fundamentada pela lógica da sobrevivência, levanta questões morais profundas que reverberam ao longo de todo o filme.

A religiosidade, frequentemente evocada pelos personagens, contrasta com a brutalidade das circunstâncias. Embora o discurso espiritual tenha sua força, ele não é suficiente para conter a desesperança ou justificar as escolhas feitas. A direção de Marshall sublinha esse confronto ao apresentar os dilemas com uma franqueza desconcertante. O filme não se limita a provocar; ele confronta o público com questões difíceis, que permanecem ecoando mesmo após os créditos finais. Para além do julgamento moral, a obra força uma reflexão sobre até onde é válido ir para continuar existindo.

Filme: Vivos
Diretor: Frank Marshall
Ano: 1993
Gênero: Drama/Suspense
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★