Se você só puder assistir a um filme argentino dos últimos 10 anos, assista ao melhor. No Prime Video Divulgação / Memento Films

Se você só puder assistir a um filme argentino dos últimos 10 anos, assista ao melhor. No Prime Video

Arthur Schopenhauer (1788-1860) concebia a vida como pura manifestação da vontade, algo essencialmente impulsionado por desejos obscuros e insondáveis. Em sua principal obra, “O Mundo como Vontade e Representação” (1818), o filósofo polonês argumentava que o ser humano é incapaz de lidar com suas aspirações, um traço que não está ligado à repressão pessoal, mas à própria contradição da natureza humana. No cinema, raros são os trabalhos que capturam, com tamanho rigor, a essência do pensamento schopenhaueriano como um filme argentino que transita entre os dilemas do querer e do não querer, envolvendo as expectativas frustradas de realização pessoal.

Este ensaio audiovisual desnuda a incapacidade humana de conciliar os sonhos grandiosos com as ações limitadas que efetivamente conseguimos empreender, revelando o vazio dos gestos e das intenções, sobretudo quando projetados sobre os outros. Schopenhauer acreditava que a vontade destrutiva contamina tudo aquilo que almejamos, uma ideia que ecoa nos personagens e conflitos deste filme, onde o ato de querer é, desde o princípio, um convite ao fracasso, e as escolhas impulsivas apenas agravam a ruína.

A narrativa ganha força na figura de Daniel Mantovani, laureado com o Nobel de Literatura e dono de uma sinceridade tão destrutiva quanto magnética. Depois de décadas vivendo na Espanha, o escritor retorna à fictícia Salas, a pequena cidade argentina de onde partiu aos 20 anos. Sua obra, repleta de sucesso e reconhecimento, contrasta com o desencanto que sente ao perceber que a consagração artística pode ser uma armadilha que legitima sistemas de valores aos quais ele nunca desejou se submeter. O retorno a Salas é permeado por homenagens desconfortáveis e reencontros que rapidamente se transformam em confrontos.

Daniel se vê envolvido em situações absurdas e tensões crescentes, enquanto confronta velhos conhecidos e remexe nas memórias de um passado que pensava ter superado. Oscar Martínez brilha ao interpretar um personagem tão complexo, oscilando entre a arrogância infantil e o profundo desencanto existencial. No contraponto, Dady Brieva, como Antonio, representa os atritos cotidianos que se intensificam até culminarem em consequências trágicas. À medida que as reviravoltas do roteiro de Andrés Duprat avançam, o público é levado a um desfecho impactante que não deixa espaço para soluções fáceis, consolidando uma reflexão sobre hipocrisia, arte e autenticidade.

O filme tece paralelos filosóficos não apenas com Schopenhauer, mas também com Roger Scruton, cuja visão crítica sobre arte e cultura ressoa nas falas de Daniel. A ideia de que a arte deve ser estética em sua essência, livre de propósitos ideológicos ou políticos, surge como um ponto central. Scruton defendia que intelectuais progressistas frequentemente desvirtuam a arte ao submetê-la a agendas externas, e esse pensamento encontra eco nos dilemas do protagonista. Daniel representa um ideal quase impossível: um artista que rejeita tanto a mediocridade quanto a manipulação simbólica de sua obra. Esse confronto entre estética pura e ideologia impura é uma das maiores tensões do longa, desafiando o espectador a refletir sobre os limites da liberdade artística e a integridade criativa.

No ato final, os diretores Gastón Duprat e Mariano Cohn conduzem o espectador a uma conclusão irônica e densa. Daniel transforma sua experiência em Salas em inspiração para um novo romance, apresentado ao público como uma síntese de suas vivências amargas. O autor que condenava a vaidade artística demonstra, na prática, que não é imune a ela. Assim como Dante em “A Divina Comédia”, Daniel emerge das profundezas de sua jornada transfigurado, mas sem perder a ambiguidade que o define. O personagem que começou rejeitando a hipocrisia do mundo acaba por abraçá-la, ciente de que, para um escritor feito de “pena, papel e vaidade”, essa é uma contradição inevitável.

Filme: O Cidadão Ilustre
Diretor: Gastón Duprat e Mariano Cohn
Ano: 2016
Gênero: Comédia/Drama
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★