Um livro de memórias que se debruça sobre 14 anos de convivência familiar dificilmente segue uma trajetória linear. Entre as páginas, encontram-se vitórias e fracassos, risos e lágrimas, prazeres e dores — fragmentos que, em conjunto, moldam o que essas pessoas se tornaram. As lembranças mais marcantes resistem ao desgaste do tempo, permanecendo nítidas, ainda que por vezes dolorosas. O ato de revisitá-las, embora necessário, expõe feridas que não cicatrizaram totalmente. É o tempo, afinal, que confere àquilo que vivemos uma permanência avassaladora: o reconhecimento de que não podemos voltar atrás, restando apenas rir ou chorar.
No filme “Era uma Vez um Sonho”, dirigido por Ron Howard, essa dinâmica ganha contornos dramáticos através das interações familiares que cercam J.D. Vance, um jovem dividido entre seu passado turbulento e a promessa de um futuro melhor. Amy Adams, em uma atuação visceral, compartilha com Gabriel Basso o foco narrativo. Sua Beverly, profundamente marcada pelo vício, oscila entre momentos de autorreflexão e recaídas devastadoras. Ela se percebe como um fardo para os entes queridos, especialmente para o filho, mas está presa em um ciclo autodestrutivo que a impede de buscar uma recuperação genuína. Para Beverly, dobrar a dose de medicamentos parece uma solução mais acessível do que enfrentar o tratamento, um dilema que sublinha a fragilidade de sua condição.
Apesar do desespero que cerca Beverly, sua família se recusa a abandoná-la. A determinação de seus parentes de resgatá-la transforma a jornada de J.D. em um misto de dor, redenção e autoaceitação. Glenn Close, como Mamaw, a avó sobrevivente e figura central da narrativa, oferece uma performance notável. Com uma caracterização meticulosa, que a torna quase irreconhecível, Close encarna uma mulher marcada por um passado de abusos e privações. Mamaw representa tanto a dureza necessária para superar adversidades quanto o amor incondicional que mantém a família unida, mesmo diante do caos.
Howard constrói a trama a partir da ideia — por vezes simplista, mas amplamente debatida — de que somos produtos de nossos ambientes. Embora a teoria tenha fundamento psicológico, o filme desafia a noção de que os modelos comportamentais são imutáveis, mostrando que o sacrifício pessoal e a força de vontade podem romper ciclos prejudiciais. A narrativa se move entre 1997 e 2011, dispensando uma cronologia rígida para explorar os eventos que moldaram J.D., interpretado inicialmente por Owen Asztalos e, na fase adulta, por Gabriel Basso.
J.D. emerge como um personagem multifacetado: um estudante de direito em Yale que luta para equilibrar as expectativas de sua nova realidade com as dificuldades de seu passado. Asztalos imprime ao jovem J.D. uma inocência cativante, enquanto Basso traduz a maturidade e a resiliência que definem sua jornada. O personagem, apesar das barreiras impostas por uma educação deficitária e pela herança cultural de uma comunidade rural, demonstra um senso inabalável de ética e dignidade. Esses traços o conectam a Usha, interpretada por Freida Pinto, cuja atuação, embora menos impactante, complementa a história com uma perspectiva de apoio e estabilidade emocional.
O filme evita o melodrama, mantendo um equilíbrio delicado entre o peso emocional dos conflitos familiares e a esperança de superação. Howard extrai de seu elenco interpretações autênticas que reforçam a credibilidade da história. Passagens cruciais, como os flashbacks que revelam o histórico de violência doméstica enfrentado por Mamaw e Beverly, ampliam a complexidade dos personagens e evocam empatia. A comparação com obras como “Os Boas-Vidas” e “Amarcord”, de Fellini, é pertinente: assim como nas criações do cineasta italiano, a identidade coletiva da família Vance está entrelaçada com seus fracassos e sucessos, refletindo uma humanidade imperfeita, mas genuína.
No cerne de “Era uma Vez um Sonho” está a luta de J.D. para encontrar seu lugar em um mundo que, muitas vezes, parece conspirar contra ele. O protagonista deseja desesperadamente romper com o passado sem se desligar completamente das raízes que o definem. Entre mesas formais que exigem etiquetas desconhecidas e as crises familiares que o chamam de volta, J.D. descobre que sua maior batalha é contra as amarras invisíveis de sua história.
O que sustenta a narrativa é a noção de que, por mais imperfeita que seja uma família, a conexão entre seus membros pode ser o diferencial que transforma vidas. Nesse contexto, Howard entrega um drama que, embora não seja isento de clichês, alcança profundidade ao capturar os dilemas universais de pertencimento, sacrifício e esperança.
★★★★★★★★★★