Como retratar uma luta tão extensa e devastadora quanto a travada entre o governo norte-americano e os cartéis de drogas na fronteira com o México sem cair em repetições previsíveis? “Sicario: Terra de Ninguém”, longa-metragem dirigido pelo canadense Denis Villeneuve, propõe uma resposta que supera qualquer abordagem simplesmente factual. O universo de violência e clandestinidade costuma ser explorado por séries como “Breaking Bad” e por documentários que examinam a realidade de vigilantes civis — a exemplo de “Cartel Land”, de Matthew Heineman. Ainda assim, a obra de Villeneuve se distingue ao criar uma experiência audiovisual que se mantém em alerta constante, como se cada cena funcionasse sob um cronômetro invisível, pronto para estourar a qualquer momento.
A trajetória de Kate Macer, interpretada por Emily Blunt, sustenta esse clima de risco contínuo. Enquanto agente do FBI, ela é convidada a participar de uma força-tarefa em meio a cadáveres emparedados e exibições perversas de corpos mutilados que remetem a um cotidiano brutal, semelhante ao que se vê em “Heli”, de Amat Escalante. Em vez de se limitar ao papel de heroína, Kate atua como um espelho para a plateia.
Ela não compreende totalmente o objetivo final da missão, tampouco percebe quem manipula cada passo seu. Entre reuniões de homens que parecem ter saído de várias zonas de conflito e a presença soturna de Alejandro (Benicio del Toro), percebe-se o desamparo da protagonista, presa a trâmites cuja lógica permanece obscura. Não bastasse isso, há Matt Graver (Josh Brolin), sujeito que exibe um ar de aparente descontração enquanto afirma representar interesses governamentais, embora demonstre uma aura própria de agentes envolvidos em operações ainda mais sombrias.
O roteiro de Taylor Sheridan, conhecido por sua experiência na série “Filhos da Anarquia”, tece um emaranhado de relações em que moral e violência se entrelaçam a ponto de se tornarem indistinguíveis. A cada plano, a câmera parece revelar um detalhe crucial desse ecossistema regido pelo medo. Avistam-se comboios de veículos atravessando fronteiras, túneis suspeitos ligando cidades como Juárez e El Paso, além de trocas de tiros em lugares em que a miséria, às vezes, é tão inquietante quanto os disparos.
As imagens de Roger Deakins ajudam a compor esse quadro de opressão palpável: a luz penetra de forma quase cirúrgica nos ambientes, expondo poeira suspensa no ar como uma ameaça que não se vê, mas se sente. Chega a lembrar o efeito de um relógio apocalíptico, no qual as sombras se arrastam pelos cenários denunciando uma contagem regressiva. Mesmo nos intervalos de silêncio, a tensão não diminui. A trilha de Jóhann Jóhannsson parece pulsar na corrente sanguínea do espectador, criando uma ambientação angustiante que rivaliza com as sequências de ação mais eletrizantes.
Por trás de toda essa estética, está uma reflexão profunda sobre a natureza humana em situações-limite, algo que Villeneuve já abordara em filmes como “Incêndios” e “Polytechnique”. Aparentemente, o sofrimento individual de Kate e a brutalidade explícita das operações remetem à discussão sobre como tragédias reais — como a própria guerra às drogas — são capazes de reduzir qualquer indivíduo a um mero peão.
Nada exemplifica melhor essa ideia do que a maneira com que Alejandro age como uma espécie de fantasma, ora protetor, ora executor, deixando claro que intenções pessoais se misturam aos interesses oficiais. Tudo isso se desenrola diante dos olhos de Kate, que, a cada nova descoberta, percebe o quão inviável é manter uma postura de pureza ou de senso de justiça absoluto.
Essa dimensão moral lembra “O Silêncio dos Inocentes”, de Jonathan Demme, onde Clarice Starling também confronta o universo masculino e situações de risco extremo. Aqui, entretanto, a protagonista assiste, perplexa, a uma lenta demolição de suas convicções. Ela tenta erguer barreiras para defender valores inegociáveis, mas as circunstâncias a levam a questionar se existe realmente um caminho plausível para a retidão numa guerra travada em múltiplas frentes.
A inclusão de cenas impactantes, como corpos pendurados em viadutos em Juárez, agrava a percepção de que, mesmo quem aparenta controle absoluto, está sujeito a forças que extrapolam qualquer lógica maniqueísta. O desconforto ganha coro quando personagens secundários, como Reggie (Daniel Kaluuya), tentam proteger Kate e acabam golpeados física e moralmente, ilustrando o quão facilmente qualquer noção de suporte pode desabar.
A soma desses elementos forma uma unidade narrativa na qual nem heróis nem vilões se encaixam nas categorias usuais. Essa abertura para interpretações complexas é sustentada por uma mise-en-scène de requinte técnico, visível na precisão dos enquadramentos e no esmero das sequências de ação. A tensão, muitas vezes, brota em cenas corriqueiras, como um congestionamento que se transforma em palco de tiroteio iminente, comprovando que o verdadeiro horror não está apenas nos cartéis, mas na desumanização que se espalha, silenciosa, entre todos os envolvidos.
Quando os créditos se aproximam, fica claro que “Sicario: Terra de Ninguém” transcende a ideia de mera ficção sobre a guerra contra as drogas. O filme sublinha, de maneira ácida, as contradições desse conflito prolongado, expondo o que se esconde na sombra dos grandes discursos oficiais. O arco de Kate Macer resume a tragédia de quem acredita ter controle — ou ao menos um propósito claro — e, no fim das contas, se vê imersa em um esquema que a supera por completo. A resignação que ela exibe no último ato revela o verdadeiro cerne do filme: não existe trégua possível quando o problema maior é a própria engrenagem que mantém a guerra viva.
Villeneuve, então, amarra cada fio com uma sutileza que não busca redenção, mas sim compreensão de um fenômeno que ultrapassa fronteiras, leis ou moral. Desse modo, “Sicario: Terra de Ninguém” canaliza o desassossego de uma era em que a luta contra o tráfico se converte em uma alegoria sombria sobre nossas escolhas e, sobretudo, sobre a precariedade de quem ousa enfrentar forças insidiosas sem jamais saber se, de fato, ficará ao lado do bem ou será consumido pela escuridão que tanto combateu.
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