Uma obra de arte naturalista, romance épico com Saoirse Ronan está na Netflix Divulgação / BBC Films

Uma obra de arte naturalista, romance épico com Saoirse Ronan está na Netflix

Escrever biografias pode ser um desafio imenso, especialmente quando os vestígios do passado se mostram escassos. Personalidades históricas com registros limitados desafiam o trabalho de reconstrução, exigindo tanto pesquisa quanto imaginação. No caso de Mary Anning, uma paleontóloga inglesa do período vitoriano, a falta de documentação detalhada abriu margem para interpretações criativas. No filme “Ammonite”, Francis Lee abraça essa liberdade, usando licenças poéticas para recriar aspectos da vida de Anning e oferecer sua própria leitura sobre quem ela foi.  

Interpretada por Kate Winslet, Mary Anning é retratada como uma pioneira da paleontologia, cujas descobertas moldaram os alicerces da ciência, chegando a influenciar Charles Darwin. Contudo, a sociedade da época não reconheceu suas contribuições como merecia. Mulher, pobre e autodidata, ela foi ignorada pela elite acadêmica. A Sociedade Geológica de Londres, por exemplo, jamais aceitou sua associação, enquanto muitos de seus achados foram apropriados sem o devido crédito. Esse apagamento histórico é central na narrativa de “Ammonite”, que foca tanto em seu isolamento social quanto em sua resiliência.  

No entanto, Francis Lee dá um passo além ao imaginar um romance entre Anning e Charlotte Murchison (Saoirse Ronan). Embora Charlotte tenha realmente sido amiga próxima de Anning, o filme reconfigura essa amizade em uma relação amorosa, ausente de registros históricos. Na história, Charlotte, esposa do geólogo Roderick Murchison, é deixada sob os cuidados de Mary enquanto seu marido viaja, justificando que ela precisava se recuperar de um colapso físico. É nesse cenário que o vínculo entre as duas floresce, transformando-se em um romance intenso e profundo.  

Essa escolha narrativa extrapola os limites factuais, mas captura a essência de temas universais, como a busca por conexão em meio à exclusão. Ambas enfrentam barreiras impostas por uma sociedade que negligencia mulheres em papéis científicos ou de protagonismo. A relação fictícia ganha peso emocional ao destacar como elas encontram, uma na outra, acolhimento e empatia em um mundo indiferente. Ainda assim, é importante notar que essa abordagem omite detalhes significativos sobre a verdadeira Mary Anning, que, apesar das dificuldades, era respeitada e mantinha amizades sólidas. Quando diagnosticada com câncer, aos 47 anos, recebeu apoio financeiro de colegas e admiradores para tratar a doença.  

No aspecto visual, “Ammonite” é uma obra-prima. A fotografia de Stéphane Fontaine traduz o isolamento das protagonistas com maestria, utilizando uma paleta de cores frias que dialoga com a paisagem costeira de Lyme Regis. As cenas longas e contemplativas reforçam a introspecção da narrativa, criando um ambiente intimista onde as emoções ganham espaço para emergir. Esse naturalismo visual reflete tanto a dureza da realidade vivida por Mary quanto a beleza bruta de sua existência.  

Disponível na Netflix, “Ammonite” transcende uma biografia convencional. Não busca ser um relato fiel, mas uma interpretação que dialoga com questões contemporâneas, como o papel das mulheres na ciência e a luta por reconhecimento. É um convite a refletir sobre os silêncios históricos e as vozes que, mesmo abafadas, resistem ao tempo.  

Filme: Ammonite
Diretor: Francis Lee
Ano: 2020
Gênero: Biografia/Drama/Romance
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★