O filósofo espanhol Miguel de Unamuno afirmou que a vida é um exercício de esquecimento, uma tarefa contínua de selecionar memórias, privilegiando umas enquanto varremos outras para as sombras do inconsciente. Inspirado livremente em “Jacques, o Fatalista, e Seu Amo” (1778), de Denis Diderot, Emmanuel Mouret conduz-nos por uma narrativa envolvente em “Mademoiselle Vingança”, que transporta o público para o século 18. Neste cenário onde as ideias de feminismo, liberdade e empoderamento eram apenas devaneios distantes, surge Madame de La Pommeraye, uma mulher cuja trajetória ecoa a resistência de quem ousa desafiar as amarras de uma sociedade que relegava as mulheres à submissão silenciosa.
A história, emoldurada pela opulência de um universo aristocrático, desvela as intrigas de um grupo entediado que encontra diversão em manipular e ferir emocionalmente. Aqui, Mouret não apenas homenageia a obra de Diderot, mas também dialoga com o clássico “Ligações Perigosas” (1782), de Choderlos de Laclos, obra que, ao longo do tempo, foi reinventada de maneiras brilhantes, como em “Segundas Intenções” (1999) e no mais recente “Justiceiras” (2022). Nesse contexto, a Madame de La Pommeraye de Cécile de France se destaca como um retrato multifacetado de uma viúva rica que, marcada por decepções amorosas, busca refúgio em sua propriedade rural, mas acaba confrontada pelas investidas do marquês d’Arcis, vivido por Edouard Baer.
Baer incorpora com maestria o arquétipo do sedutor inescrupuloso, um manipulador hábil que se aproveita da fragilidade alheia com o mesmo cinismo de Valmont, o emblemático anti-herói de Laclos. Sua interação com Madame de La Pommeraye é construída com camadas de tensão, desejo e dúvida, culminando em uma inesperada rendição da viúva às investidas do marquês, que parece, ao menos por um breve momento, um homem regenerado.
O terceiro ato, peça central do enredo, introduz a Madame de Joncquières e sua filha, personagens que selam o destino dos protagonistas. Natalia Dontcheva entrega uma performance poderosa como a mulher arruinada pela hipocrisia da nobreza, enquanto Alice Isaaz, no papel da jovem Mademoiselle de Joncquières, empresta frescor e intensidade ao desfecho da trama. A dinâmica entre essas figuras femininas complexas oferece um contrapeso fascinante à frivolidade masculina representada pelo marquês, conduzindo a narrativa a uma conclusão que mistura redenção, vingança e ironia.
Com um apuro técnico inegável, Mouret cria um filme que evoca o espírito de um folhetim clássico, sem abrir mão de uma abordagem contemporânea. Anne Bochon merece destaque pelo trabalho minucioso na reconstrução do vestuário de época, um detalhe que reforça a autenticidade da ambientação e transporta o espectador para os salões suntuosos e intrigas refinadas do Iluminismo francês.
Alguns críticos podem alegar que narrativas como esta “envelhecem mal”, mas a persistência de temas como traição, poder e resiliência feminina refuta tais alegações. “Mademoiselle Vingança” não apenas revisita o passado, mas também ilumina as contradições e complexidades humanas que continuam a ressoar no presente.
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