Falar sobre aquilo que se conhece e ama é uma experiência que ressoa universalmente. Esse conceito, inspirado pelo poema “O rio da minha aldeia”, de Fernando Pessoa, guia a essência de “Belfast”, uma obra profundamente pessoal em que Kenneth Branagh revisita a sua infância na Irlanda do Norte dos anos 1960. Em um cenário marcado pelas divisões religiosas e políticas que se intensificariam por décadas, Branagh transforma memórias em cinema, criando um retrato visceral e poético da inocência em meio ao caos.
Como um dos maiores intérpretes contemporâneos, Branagh captura, com habilidade magistral, a confusão e o encanto de um menino de nove anos imerso em uma realidade tumultuada. O jovem Buddy, claramente um reflexo do próprio diretor, vivencia as disputas entre protestantes e católicos nas ruas que dão nome ao filme. Filmado em preto e branco por Haris Zambarloukos, as lembranças ganham nuances visuais distintas, pontuadas por flashes de cor, como se as memórias, por mais escondidas, esperassem ser redescobertas e reinterpretadas.
Na dedicatória que abre o filme, Branagh escreve: “Para os que ficaram, para os que partiram, e por todos aqueles que se perderam”. Com essa frase, ele encapsula a dor, a nostalgia e as cicatrizes de 1969, ano em que os “Troubles” transformaram o cotidiano de Belfast em um cenário de tensão e violência. As ruas da cidade, com suas portas arrombadas e vidraças estilhaçadas, tornam-se palco para uma história que, apesar de pessoal, ecoa coletivamente.
Buddy, interpretado com delicadeza e autenticidade por Jude Hill, é o centro emocional dessa narrativa. Ao lado dele, Caitríona Balfe e Jamie Dornan dão vida a Ma e Pa, figuras parentais complexas que enfrentam o dilema de partir em busca de um futuro melhor. Dornan, conhecido por papéis anteriores como em “Cinquenta Tons de Cinza”, exibe aqui uma maturidade artística impressionante, consolidando sua transição para papéis mais profundos e desafiadores. Sua atuação remete ao vigor que demonstrou em “O Cerco de Jadotville”, revelando novas camadas de seu talento.
Acompanhando esse núcleo familiar, Judi Dench e Ciarán Hinds interpretam os avós de Buddy, trazendo ao filme uma profundidade emocional incomparável. Dench, colaboradora de longa data de Branagh, entrega uma performance arrebatadora, especialmente nas cenas em que a violência ameaça invadir o santuário da vida doméstica. Ao lado de Hinds, ela constrói um retrato comovente de resiliência e amor em tempos de incerteza.
Branagh, criado em um lar protestante, explora em “Belfast” as marcas indeléveis deixadas por uma era de terror e sectarismo. Mais do que uma viagem nostálgica, o filme se revela uma poderosa crítica à intolerância e uma ode à empatia. Ele nos lembra que, mesmo nas circunstâncias mais adversas, há beleza, humanidade e uma resistência silenciosa que perdura.
“Belfast” transcende o pessoal para se tornar universal, reafirmando que as histórias mais íntimas têm o poder de falar a todos. Com uma narrativa que equilibra ternura e brutalidade, Kenneth Branagh oferece um retrato inesquecível de uma época, deixando uma mensagem atemporal sobre as consequências da divisão e a força do espírito humano.
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