Faroeste arrepiante com John Cusack, inspirado em Akira Kurosawa, está na Netflix Divulgação / Saban Films

Faroeste arrepiante com John Cusack, inspirado em Akira Kurosawa, está na Netflix

Uma existência simples e sem turbulências em um canto remoto do Velho Oeste deveria simbolizar o auge da realização para uma comunidade habituada a viver à margem, sem expectativas de ajuda ou intervenção externa. É nesse cenário de aparente tranquilidade que se desenrola a trama de “Terra Sem Lei”, acompanhando Patrick Tate, um carpinteiro introspectivo que, ao mesmo tempo que molda madeira, parece esculpir sua própria essência. Emile Hirsch oferece uma interpretação refinada, dando ao protagonista uma profundidade rara, como se cada gesto fosse o produto de uma narrativa invisível, de emoções contidas e cicatrizes invisíveis.

O diretor Ivan Kavanagh, ele próprio irlandês como seu personagem principal, desenha inicialmente um ambiente que evoca a placidez bucólica de um vilarejo intocado pelo tempo. Contudo, como as colinas descritas por Giacomo Leopardi, essa calma revela-se frágil, uma felicidade cristalina pronta a se estilhaçar. O catalisador dessa ruína é a chegada de Albert, um forasteiro que carrega em si a promessa de caos e mudança irreversível. John Cusack encarna o personagem com uma intensidade que transcende o arquétipo do vilão, transformando Albert em um profeta sombrio de um mundo sem regras, onde a moralidade é eclipsada pelos instintos mais primitivos.

A partir da chegada de Albert, o que antes era um refúgio idílico se transforma em um redemoinho de tensões, traições e violência. A paz cede lugar ao tumulto, à degradação e à morte, enquanto as instituições que deveriam preservar a ordem — religião, comunidade e família — se desintegram diante da corrosiva influência do novo arrivista. Kavanagh constrói uma parábola poderosa sobre o colapso da civilidade, explorando como o silêncio cúmplice e a covardia permitem que o pior dos seres humanos venha à tona. A narrativa culmina em uma devastadora inversão da ordem, onde reina a máxima cruel do olho por olho, transformando o vilarejo em um território de ruínas morais e físicas.

Inspirado por mestres do gênero como Sérgio Leone e Akira Kurosawa, Kavanagh oferece um western que dialoga com clássicos como “Por Um Punhado de Dólares”, mas imprime sua própria marca ao recusar as nuances de camaradagem entre heróis e antagonistas. O carpinteiro Patrick Tate, diferentemente dos pistoleiros ambíguos de Leone, é um homem que, apesar de suas contradições, busca preservar a dignidade em meio à barbárie. Sua relação com a esposa Audrey, interpretada com delicadeza por Déborah François, e seus dois filhos é um raro ponto de luz em uma narrativa dominada pela escuridão.

O vilão Albert, por sua vez, é mais do que uma figura caricata. Vestido de preto, com um chapéu de abas largas que amplifica sua presença ameaçadora, ele representa a antítese de tudo que o vilarejo de Garlow preza. Sua postura desdenhosa e brutalidade calculada o colocam em contraste direto com o reverendo Samuel Pike, vivido por Danny Webb, cuja autoridade moral começa a ruir sob o peso das próprias falhas e hipocrisias. Em uma das cenas mais impactantes, Albert transforma um sermão em uma cruel farsa, revelando a fragilidade das crenças que sustentam a comunidade.

O embate final entre Tate e Albert, ambientado dentro da igreja — um espaço que deveria simbolizar redenção, mas é transformado em palco de tragédia —, encapsula a essência do filme. O sangue derramado mancha o Cristo crucificado, uma imagem poderosa que sintetiza a falência espiritual e moral daquele mundo. Kavanagh conduz o espectador a uma reflexão amarga sobre a natureza humana, o preço da omissão e a impossibilidade de se manter imune ao mal quando este se instala no coração de uma sociedade.

Com uma narrativa tão áspera quanto o cenário árido que retrata, “Terra Sem Lei” não é apenas um western sobre disputas de território ou vingança, mas uma meditação sombria sobre os limites da civilização e o que acontece quando esses limites são obliterados. É um filme que desafia o espectador a encarar o horror de frente, sem promessas de redenção ou conforto, mas com a certeza de que, em certos lugares, a verdadeira lei é a ausência dela. 

Filme: Terra Sem Lei
Diretor: Ivan Kavanagh
Ano: 2019
Gênero: Drama/Faroeste
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★