A conexão entre amor e comida remonta a tempos imemoriais, tecendo uma trama invisível que une prazer, necessidade e criação. Em “O Sabor da Vida”, Tran Anh Hung conduz o espectador por um percurso sensorial onde a cozinha se torna palco de um romance silencioso, mas poderoso. A obra, adaptada do romance “A Vida e a Paixão de Dodin Bouffant, Gourmet”, de Marcel Rouff, mergulha no universo de um gastrônomo francês e sua cozinheira, uma verdadeira artista que transforma a preparação de alimentos em poesia. Em cada cena, a relação entre os personagens se desenrola como um banquete meticulosamente planejado, onde cada gesto tem significado, e cada prato, um simbolismo.
A narrativa se desenha num contexto onde a comida transcende sua função primordial e se torna um elemento transformador nas dinâmicas humanas. O filme está ancorado na relação de Dodin Bouffant e Eugénie, cujos sentimentos permanecem subjacentes à rigidez hierárquica da cozinha. Enquanto ele, interpretado com sutileza por Benoît Magimel, domina o cenário com um charme sofisticado, ela, vivida por Juliette Binoche, flutua em meio a panelas e especiarias como uma coreógrafa da gastronomia. A cada prato servido, o casal revela facetas de um amor que se equilibra entre a liberdade e a convenção.
O desenvolvimento dos personagens é enriquecido pela presença de Violette e Pauline, interpretadas respectivamente por Galatéa Bellugi e Bonnie Chagneau-Ravoire. Pauline, jovem e curiosa, representa uma extensão de Eugénie, absorvendo com admiração e delicadeza os segredos de uma cozinha que não apenas alimenta, mas também emociona. O contraste entre as gerações amplia a dimensão do enredo, sugerindo que a paixão pela arte culinária é uma herança invisível, passada de mãos experientes para aprendizes atentos.
A trama, contudo, não é marcada por grandes reviravoltas, mas por uma narrativa que avança como um banquete sofisticado: camadas são desvendadas a cada cena, revelando a complexidade das relações humanas. Em um dos momentos mais marcantes, Eugénie rejeita os insistentes pedidos de casamento de Bouffant, justificando sua decisão com uma reflexão que ultrapassa o íntimo: o medo de perder sua individualidade em um mundo que frequentemente subjuga mulheres a papéis predeterminados. Essa declaração ressoa com uma força contemporânea, conferindo à obra uma relevância que vai além de seu contexto histórico.
No terceiro ato, depois de um jantar romântico preparado por Bouffant em uma última tentativa de conquistar o coração de Eugénie, ela cede. Contudo, essa rendição carrega um peso simbólico: como se traísse sua própria natureza, sua saúde começa a se deteriorar. Binoche entrega uma performance comovente, expressando com nuances a agonia de uma mulher dividida entre o amor e a liberdade. A partir desse ponto, o foco parece se deslocar para Pauline, cuja presença cresce em importância, sugerindo uma continuidade quase espiritual do legado de Eugénie.
“O Sabor da Vida” evita soluções fáceis ou finais excessivamente reconfortantes. Tran Anh Hung opta por uma abordagem que valoriza a delicadeza e a complexidade, recusando clichês e fórmulas previsíveis. A fotografia, cuidadosamente composta, enfatiza a materialidade dos alimentos e a intimidade dos espaços, enquanto a trilha sonora acrescenta camadas de emoção sem jamais se sobrepor à narrativa.
O resultado é uma obra profundamente lírica, que celebra os prazeres e as dores do amor e da criação. “O Sabor da Vida” não se limita a contar uma história, mas convida o espectador a refletir sobre a efemeridade da vida, a riqueza das relações humanas e o papel da arte, seja na cozinha ou na tela, como testemunha dos amores que florescem e se desvanecem. Por muitos outonos.
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