115 milhões de visualizações e 90 dias no Top 10: a terceira série em inglês mais assistida da história da Netflix Divulgação / Netflix

115 milhões de visualizações e 90 dias no Top 10: a terceira série em inglês mais assistida da história da Netflix

O nada óbvio universo macabro de Ryan Murphy desdobra-se em cima de emoções contraditórias e algo fascinantes. Pelo que diz nas campanhas de divulgação de seus trabalhos, Murphy, um dos grandes showrunners da América, crê que o bárbaro no gênero humano caminha lado a lado com o divino, e, em sendo assim, ninguém, absolutamente ninguém, encarna só um deles. Como em “American Crime Story” (2016-2018), “História de Horror Americana” (2011-2023) e “Halston” (2021), Murphy, bem ao seu estilo, enfronha-se sem censura de qualquer natureza num dos casos mais abjetos da longa história criminal dos Estados Unidos, abusando de cenas com sexo e violência explícita, a fim de tentar entender o que teria levado um homem branco a seduzir, matar e ingerir a carne dos cadáveres dos dezessete rapazes pretos e asiáticos que trucidava sem jamais ser incomodado pela polícia.

Existe racismo, claro, mas ao longo dos dezenove episódios de “Dahmer: Um Canibal Americano”, que assina com Ian Brennan, percebe-se que o buraco é mais fundo. A série, ainda hoje uma das que mais provocaram comoção mesmo depois de dois anos da estreia, em 21 de setembro de 2022, humaniza Jeffrey Lionel Dahmer (1960-1994), o que não deveria ser nenhum escândalo, apontando sua torpeza ao passo que busca possíveis razões para seus feitos inomináveis.

Murphy e Brennan fazem de “Dahmer” a jornada antiépica de um criminoso ávido por algum modo de redenção, mas só depois de deixar claro seu prazer com caçadas pelos bares e vielas escuras de Milwaukee, Wisconsin, norte dos Estados Unidos. Os primeiros cinco episódios orbitam em torno do protagonista e sua relação com a família disfuncional, com os pais, Lionel e Joyce, numa contenda pré-separação até que a mãe sai quase às escondidas, soltando uma ou outra palavra de consolo ao filho em meio a patadas. O ano de 1978 marca essa primeira ruptura na linearidade de uma vida aparentemente sem perturbações, e não por acaso também é quando Dahmer faz sua primeira vítima.

O comportamento predatório do assassino torna-se pouco mais que um fetiche simbólico na narrativa, até que, no sexto capítulo, a ação concentra-se em Tony Hughes, o 12º alvo, da mesma forma que, a partir do décimo segmento, Dahmer partilha a tela com Glenda Cleveland (1954-2010), a vizinha que tenta denunciá-lo às autoridades, mas que só ganha crédito quando Tracy Edwards, o homem que escapa do apartamento do maníaco, vai registra um boletim de ocorrência. Shaun Brown é hábil em transmitir a angústia de alguém que livra-se do inferno e tem a oportunidade de interromper aquele ciclo diabólico treze anos depois, ainda que o futuro reservasse para Edwards prisões por porte de drogas, roubo, danos materiais e pensões alimentícias em aberto. 

Ainda que breves, as interações de Evan Peters e Niecy Nash são um espetáculo à parte em “Dahmer”. Peters e Nash encontram o tom  adequado de cálculo e explosão, até que Murphy e Brennan encaminhem a trama para o desfecho brutal, remetendo o espectador a uma ideia de vingança racial. Jeffrey Dahmer foi assassinado por Christopher Scarver, um detento afro-americano, na academia da cadeia. Scarver cumpria prisão perpétua pela morte de Steve Lohman desde 1992, quando, na manhã de 28 de novembro de 1994, matou Dahmer e atacou Jesse Anderson (1957-1994) a golpes de haltere. Anderson morreu dois dias depois. Os novos homicídios acrescentaram mais duas penas capitais à ficha de Scarver, reforçando a máxima hobbesiana sobre a índole animalesca de nossa espécie. Talvez nem o babilônico Código de Hamurabi nos detenha mais.


Série: Dahmer: Um Canibal Americano
Criação: Ryan Murphy e Ian Brennan
Anos: 2022-2023
Gêneros: Drama/Terror 
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.