A obra-prima complexa e genial de Sebastián Lelio, vista 5 milhões de vezes, na Netflix Christopher Barr / Netflix

A obra-prima complexa e genial de Sebastián Lelio, vista 5 milhões de vezes, na Netflix

Em certos momentos, o cinema transcende seu papel de entretenimento, transformando-se em um meio poderoso para investigar os dilemas humanos mais intrincados. “O Milagre”, dirigido por Sebastián Lelio e lançado em 2022, exemplifica essa dimensão reflexiva da arte cinematográfica. Baseado no romance de Emma Donoghue, a mesma autora de “O Quarto de Jack”, o filme nos conduz à Irlanda de 1862, em um enredo que mistura mistério, fé e ciência, colocando o espectador diante de questões morais profundas.

No centro da narrativa está Elizabeth Wright, interpretada com intensidade por Florence Pugh, uma jovem enfermeira chamada para investigar um fenômeno inexplicável: Anna, uma menina de 11 anos, supostamente não consome alimentos há quatro meses. O vilarejo rural onde a história se desenrola está dividido entre aqueles que veem a situação como um milagre divino e os que suspeitam de enganaço. Pragmática e guiada por métodos científicos, Elizabeth impõe um rigoroso regime de observação, restringindo qualquer possibilidade de interferência externa na rotina de Anna. Entretanto, o confronto entre a racionalidade da enfermeira e as crenças locais desencadeia uma tensão que transcende a simples busca por respostas.

À medida que os dias passam, uma relação complexa se desenvolve entre Elizabeth e Anna. Marcada por traumas pessoais, a enfermeira se vê confrontada por dúvidas internas, enquanto a saúde da menina se deteriora de forma alarmante. A luta entre a fé e a ciência emerge como o eixo central da trama, explorado com profundidade tanto nas interações entre os personagens quanto nas escolhas narrativas de Lelio. O diretor habilmente evita respostas fáceis, preferindo expor as nuances e as ambiguidades que acompanham essas forças opostas.

Visualmente, “O Milagre” é um banquete para os olhos. A cinematografia destaca a paisagem irlandesa em toda a sua dureza e beleza, utilizando uma paleta de cores que combina tons terrosos e verdes profundos para criar uma atmosfera ao mesmo tempo acolhedora e opressiva. A direção de arte não apenas estabelece o contexto histórico, mas também reforça o simbolismo presente na narrativa. As sequências iniciais e finais do filme, que revelam deliberadamente o aparato cinematográfico, não são meros floreios artísticos. Essa abordagem metalinguística provoca o espectador a refletir sobre a própria natureza das histórias que consumimos, ecoando a jornada de Elizabeth na busca pela verdade por trás das aparências.

“O Milagre” também dialoga com questões contemporâneas. Em um mundo saturado por informações e desinformação, o filme levanta uma crítica pertinente à facilidade com que narrativas falsas podem ganhar força. Ao questionar a fragilidade da fé cega e a importância de um exame crítico dos fatos, a obra ressoa além de seu contexto histórico, trazendo à tona a responsabilidade individual e coletiva na construção da verdade.

Disponível na Netflix, “O Milagre” é muito mais do que uma história de mistério. É um convite à introspecção, uma exploração das relações humanas e de suas complexidades, além de um retrato poderoso do impacto das crenças — sejam elas religiosas, científicas ou culturais — na maneira como interpretamos o mundo. Em cada frame e em cada linha de diálogo, Sebastián Lelio demonstra o potencial transformador do cinema como uma arte que desafia, provoca e ilumina.

Filme: O Milagre
Diretor: Sebastián Lelio
Ano: 2022
Gênero: Drama/Mistério/Suspense
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★