A relação entre ética e criação artística sempre foi motivo de intenso debate. Desde a Antiguidade, filósofos como Platão e Aristóteles já questionavam os impactos morais da arte, divergindo em suas conclusões sobre a função ética do artista na sociedade. Platão, em sua crítica à poesia, sugeria que a arte mimética, ao afastar-se da verdade, corrompia a alma e a moral dos indivíduos, sendo, portanto, perigosa. Aristóteles, por sua vez, em “Poética”, estabelecia uma defesa da arte, especialmente da tragédia, como uma forma de purgação de emoções (“catarse”), valorizando, assim, a função social e educativa da criação estética. Ambos os pensadores, no entanto, concordavam em um ponto crucial: a arte não era neutra e, de algum modo, estava vinculada à moralidade.
O dilema entre estética e ética também foi profundamente discutido ao longo da modernidade. Kant, em sua “Crítica do Juízo”, introduz a ideia de que o belo é independente do bom, um juízo de gosto autônomo que não depende de considerações morais. Para Kant, a estética se estabelece no reino da “finalidade sem fim”, ou seja, o prazer estético é desinteressado e não se vincula diretamente a preceitos éticos. No entanto, mesmo na autonomia do juízo estético, surge a questão: pode uma obra de arte ser moralmente condenável, mas esteticamente sublime? Essa dicotomia se intensifica na modernidade tardia, especialmente com a emergência de obras que questionam radicalmente as normas éticas vigentes.
No século 20, essa discussão se torna ainda mais complexa com o advento de artistas e escritores cuja produção estética desafiava categoricamente os valores morais de suas épocas. A obra de arte passou a ser vista, em muitos casos, como uma forma de romper com as estruturas sociais e morais dominantes, provocando o público e instigando-o a reconsiderar suas certezas. Movimentos como o modernismo e o surrealismo promoveram uma ruptura deliberada com as convenções, tanto estéticas quanto éticas, levando a criações que, para muitos, foram vistas como imorais, mas que, ao mesmo tempo, marcaram o apogeu da expressão artística. Em figuras como Céline, essa contradição atinge seu ápice.
Louis-Ferdinand Céline, autor de “Viagem ao Fim da Noite”, é um exemplo notório de como a criação literária pode conviver com uma trajetória pessoal moralmente questionável. Céline, além de escritor revolucionário, foi colaboracionista do regime nazista durante a Segunda Guerra Mundial, o que colocou sua figura pública sob intenso escrutínio. No entanto, seu romance continua a ser considerado um dos maiores feitos literários do século 20, uma obra monumental que desafia convenções estéticas ao mesmo tempo em que mergulha na miséria e no niilismo da condição humana. A pergunta que surge, então, é: como conciliar a grandeza estética com a baixeza moral? Pode-se separar o homem da obra? E, mais ainda, deve-se fazer essa separação?
Georg Lukács, teórico marxista, oferece uma perspectiva que pode auxiliar na reflexão sobre a relação entre ética e estética, mesmo que minhas filiações filosóficas, teóricas e estéticas (sou um estruturalista convicto) passem ao largo e até no sentido contrário do marxismo, mas não se deve jogar fora a criança junto com a água da bacia, e até em um discurso com o qual não nos filiamos podemos encontrar coisas proveitosas. Em “Teoria do Romance”, Lukács argumenta que a forma do romance é, por si só, um reflexo da alienação moderna, e que a grandeza da obra literária está em sua capacidade de expor as contradições do espírito da época. Sob essa ótica, Céline pode ser visto como alguém que, através de sua obra, revelou as feridas do século 20, mesmo que sua vida pessoal tenha contradito os valores humanistas que muitos acreditam estar no centro da boa literatura. Para Lukács, a estética do romance transcende o indivíduo, pois a obra literária é parte de um processo histórico e social mais amplo.
Outro ponto fundamental na discussão é a visão de Friedrich Nietzsche, para quem a moral é uma construção histórica e a arte deve transcender qualquer julgamento ético restrito. Em “O Nascimento da Tragédia”, Nietzsche valoriza a arte dionisíaca, aquela que celebra o caos, a dor e a irracionalidade, como uma forma de acessar verdades mais profundas que escapam à racionalidade apolínea. Céline, com sua linguagem violenta, sua representação do caos existencial e seu niilismo inescapável, parece encarnar esse espírito dionisíaco. A obra literária, sob essa perspectiva, não está sujeita a uma moral tradicional; ela se justifica por sua própria intensidade estética, por sua capacidade de desestabilizar e confrontar o leitor.
Assim, chegamos a um impasse: se, por um lado, a obra de arte pode ser vista como uma entidade autônoma, que responde apenas às suas próprias regras internas, por outro, a recepção dessa obra nunca está descolada de um contexto moral e político. A crítica moderna e contemporânea tem se debruçado sobre a questão de como as biografias dos autores impactam a recepção de suas obras. Para alguns, a grandeza estética de uma obra é capaz de redimir as falhas morais de seu criador; para outros, essas falhas comprometem irremediavelmente o valor da produção artística. É nesse terreno conflituoso que o debate sobre Céline se insere: sua obra monumental pode ser lida independentemente de seu colaboracionismo ou sua traição ética deve comprometer seu valor estético?
Louis-Ferdinand Céline, nascido Louis Ferdinand Auguste Destouches, em 1894, em Courbevoie, França, foi um dos escritores mais controversos e inovadores do século 20. Formado em medicina, Céline trabalhou como médico em diversos contextos antes de se dedicar integralmente à literatura, uma profissão que nutria desde cedo, mas que ganhou força após sua experiência devastadora na Primeira Guerra Mundial, na qual serviu como soldado. Essa experiência foi crucial para moldar sua visão de mundo profundamente cínica, pessimista e marcada por uma desilusão radical com a humanidade e as instituições. A guerra, com seu horror, absurdo e violência, tornou-se um elemento central em sua obra, especialmente em seu primeiro e mais famoso romance, “Viagem ao Fim da Noite”, publicado em 1932. Por mais que no máximo 10% das páginas deste romance se passe em um ambiente de guerra explícito, todo o espectro da obra é incensado por questões pertinentes à guerra ou que foram despertadas por ela.
Esse romance é um retrato brutal da condição humana, apresentando o mundo como um lugar de miséria, traição e crueldade. Nele, o protagonista, Ferdinand Bardamu, uma espécie de alter ego de Céline, percorre os cenários mais sombrios e desesperançosos da sociedade, desde o campo de batalha até os hospitais de guerra, passando pelas colônias africanas e pelas fábricas americanas. A linguagem de Céline é notável por sua oralidade, um fluxo de consciência cortante que rompe com as convenções literárias da época, revelando a brutalidade da existência com uma honestidade visceral. No entanto, o sucesso de “Viagem ao Fim da Noite”, tanto crítico quanto comercial, foi logo ofuscado pelas escolhas políticas que Céline viria a fazer na década seguinte.
Durante a Segunda Guerra Mundial, o escritor se envolveu em uma das mais repugnantes alianças ideológicas de seu tempo: o colaboracionismo com o regime nazista. Céline publicou, entre o fim dos anos 1930 e o início dos 1940, uma série de panfletos antissemitas virulentos, como “Bagatelles pour un massacre” e “L’école des cadavres”, nos quais ele articulava uma retórica profundamente racista e conspiratória. Esses textos, carregados de um ódio desmedido contra os judeus, causaram grande indignação, e, embora fossem menos conhecidos que suas obras literárias, marcaram sua reputação de forma indelével. Céline, que já era conhecido por seu niilismo literário, passou a ser visto não apenas como um cínico literário, mas como um cúmplice de um regime genocida.
Com a ocupação da França pelos nazistas, Céline abraçou o colaboracionismo, tornando-se defensor público do governo de Vichy e das políticas antissemitas. Sua postura o colocou no centro de uma tempestade política e literária da qual ele jamais escaparia totalmente. Ao fim da guerra, em 1944, quando o regime de Vichy caiu e a França foi libertada, Céline fugiu para a Alemanha e, em seguida, para a Dinamarca, onde permaneceu exilado por vários anos. Durante esse período, ele foi julgado à revelia por traição na França e condenado, acusado de colaborar com o inimigo e de incitar o ódio racial. No entanto, após uma breve prisão na Dinamarca, foi libertado e, em 1951, recebeu anistia do governo francês, o que lhe permitiu retornar à sua terra natal.
Apesar da anistia, o ostracismo literário que Céline enfrentou foi implacável. Durante anos, sua reputação esteve profundamente manchada pelos seus escritos colaboracionistas e antissemitas, e muitos intelectuais, críticos e leitores se recusavam a dissociar o escritor do homem. A questão era moral: como poderia alguém com uma visão de mundo tão corrosiva e cruel, que havia apoiado uma das maiores atrocidades da história, ser também o criador de uma obra literária tão inovadora e esteticamente poderosa?
Mesmo diante desse ostracismo, Céline continuou a escrever. Seus romances posteriores, como “Morte a Crédito” e “Rigodon”, mantiveram o estilo inconfundível que ele inaugurara em “Viagem ao Fim da Noite”: uma linguagem explosiva, fragmentada, que combinava gírias e expressões coloquiais com uma densidade poética desconcertante. “Morte a Crédito” não teve a mesma recepção positiva da crítica, mas ouso dizer que isso já é contaminação pelas questões políticas, pois o romance é um triunfo de projeto literário. Seu retorno à cena literária foi gradual e, durante anos, marcado por polêmicas. Houve aqueles que o consideraram um gênio literário, capaz de capturar como poucos o absurdo da existência moderna. Outros nunca puderam perdoá-lo por suas convicções ideológicas.
A complexidade de Céline reside precisamente nesse paradoxo: como um homem que revelou de forma tão intensa as mazelas da sociedade e do ser humano também pôde compactuar com um regime que personificava a desumanização e a barbárie? Essa tensão é central para a compreensão de sua vida e obra. O colaboracionismo de Céline não pode ser ignorado, e seus panfletos antissemitas são, indiscutivelmente, um capítulo sombrio de sua biografia. Contudo, sua contribuição à literatura moderna, especialmente com “Viagem ao Fim da Noite”, é indelével. Céline revolucionou a linguagem do romance, trazendo para a ficção uma autenticidade brutal e uma estética do caos que influenciaria inúmeros escritores depois dele.
A recepção de sua obra literária, por conseguinte, sempre esteve impregnada por essas contradições. Para alguns críticos, o valor estético de sua obra deve prevalecer sobre as falhas morais de sua vida pessoal, enquanto outros preferem silenciar sobre sua existência, considerando-o indigno de qualquer defesa. O dilema de Céline ilustra, talvez de maneira extrema, a questão mais ampla e atemporal sobre até que ponto a vida e as convicções de um autor devem interferir na leitura e apreciação de sua obra.
“Viagem ao Fim da Noite” é, sem dúvida, uma obra que transformou o panorama literário do século 20. Publicado em 1932, o romance rapidamente se destacou não apenas por seu conteúdo sombrio e niilista, mas sobretudo por suas inovações estruturais e estilísticas. Céline rompeu de maneira decisiva com as formas tradicionais do romance, trazendo uma nova sensibilidade literária marcada pela fragmentação, pela oralidade e por uma linguagem que refletia, com brutalidade, a condição humana em sua forma mais crua. Essa revolução estética foi o que garantiu ao livro seu lugar de destaque no cânone literário, mesmo que sua recepção inicial tenha sido permeada por controvérsias.
Uma das principais características estruturais de “Viagem ao Fim da Noite” é a recusa de Céline em aderir à narrativa linear e ao desenvolvimento clássico de personagens. A história de Ferdinand Bardamu, o protagonista e alter ego de Céline, não segue uma trajetória ascendente de crescimento ou iluminação; ao contrário, é uma espiral de degradação e desesperança. A estrutura do romance é episódica, com capítulos que parecem fragmentos desconexos de uma vida vivida à deriva. O leitor é levado de um cenário a outro — as trincheiras da Primeira Guerra Mundial, a África colonial, as fábricas americanas, os subúrbios miseráveis da França — sem qualquer promessa de redenção ou propósito. Essa estrutura desordenada espelha o caos e a desorientação de um mundo que, aos olhos de Céline, não oferece nenhuma saída digna ou honrosa.
Em termos de linguagem, Céline inovou ao incorporar à sua escrita um estilo coloquial, quase vulgar, que evocava a fala comum das ruas, distanciando-se da prosa literária mais elevada e formal. O narrador de “Viagem ao Fim da Noite” usa uma linguagem crua, repleta de gírias, jargões e expressões populares, mas que, paradoxalmente, é incrivelmente poética em sua força destrutiva. Céline foi capaz de transformar a banalidade da linguagem cotidiana em uma arma estética, que não só desmascara as hipocrisias sociais, mas também desnuda o vazio existencial de seus personagens. A oralidade da prosa confere ao texto uma cadência quase musical, ao mesmo tempo em que aproxima o leitor da realidade brutal que o autor deseja retratar. O uso de elipses, reticências e frases abruptas sugere a fragmentação do pensamento e da própria realidade, enquanto o ritmo da narrativa parece imitar o fluxo ininterrupto da fala, com suas pausas, digressões e incertezas.
Além disso, a linguagem de Céline é profundamente visual e sensorial, quase cinematográfica em sua capacidade de criar imagens vívidas e intensas. O autor descreve com minúcia as paisagens sombrias e as condições degradantes dos personagens, mas o faz de maneira visceral, como se o leitor estivesse imerso na sujeira, no sofrimento e na violência do mundo. Essa materialidade da linguagem de Céline reflete sua concepção de que a literatura não deve oferecer refúgio ou consolo; ela deve confrontar o leitor com o abismo da existência, sem adornos, sem véus. A cada página, o romance revela o horror da vida moderna, e o faz com uma brutalidade estilística que é, ao mesmo tempo, repulsiva e fascinante.
O estilo de Céline em “Viagem ao Fim da Noite” também é marcado por uma ironia corrosiva. O narrador Bardamu é profundamente cínico e pessimista, mas esse pessimismo é frequentemente contrabalançado por um humor negro que permeia o romance. O sarcasmo e a zombaria que Céline direciona a todos os aspectos da vida — da guerra à política, do amor à amizade — transformam o romance em uma crítica mordaz da sociedade contemporânea. A guerra, por exemplo, é retratada não como uma experiência heroica, mas como um massacre absurdo e inútil, onde os soldados não são glorificados, mas reduzidos a autômatos sem valor, meros peões em um jogo de destruição. Da mesma forma, as colônias africanas são descritas como o apogeu da exploração e da brutalidade ocidental, e as fábricas americanas como um símbolo do vazio consumista que permeia a modernidade.
Essa ironia também está presente na maneira como Céline aborda seus personagens. Bardamu, embora protagonista, não é um herói no sentido tradicional. Ele é covarde, egoísta e incapaz de grandes atos de coragem ou altruísmo. No entanto, é precisamente essa falta de heroísmo que o torna uma figura tão poderosa: ele é o anti-herói da modernidade, um homem consciente da futilidade de sua existência, mas que continua a viver, a vagar, a observar e a relatar. Esse desespero existencial, que atravessa todo o romance, é apresentado sem qualquer sentimentalismo ou apelo moral. O leitor é confrontado com a banalidade do mal, com a indiferença do universo e com a crueldade da sociedade sem nenhum consolo ou solução oferecida.
Em termos estilísticos, Céline também se destaca por sua capacidade de criar uma atmosfera de claustrofobia e angústia. O título já sugere essa descida ininterrupta ao desconhecido, ao vazio, à escuridão. A noite, no romance, é tanto uma metáfora para a morte quanto para o estado perpétuo de alienação em que Bardamu e os outros personagens se encontram. A narrativa parece envolta em sombras, em uma névoa densa de desesperança, e o leitor é arrastado nessa viagem sem fim, sem saber o que encontrará na próxima página, mas sempre ciente de que não haverá luz no fim do túnel.
Assim, “Viagem ao Fim da Noite” não é apenas um romance sobre a miséria e o absurdo da existência humana; é uma obra-prima estilística, que revolucionou o romance moderno ao romper com as convenções formais e trazer para a literatura uma linguagem nova, feroz e crua. Céline foi capaz de capturar a desordem e a fragmentação do século 20, criando um estilo que, em sua aparente simplicidade, desafiava todas as normas estabelecidas e, em sua complexidade, continua a desafiar os leitores e críticos até hoje.
A grandiosidade do romance reside, em parte, na maneira como Céline conseguiu sintetizar as angústias e as contradições da modernidade. O romance expõe, com uma clareza brutal, a dissonância entre as promessas de progresso da civilização e a crueza das experiências humanas reais: a violência, o medo, o egoísmo. Sua obra não busca redenção; ao contrário, ela afunda no caos existencial, desafiando as expectativas do leitor e, ao mesmo tempo, lançando questões éticas que vão muito além do enredo em si. Como conciliar a criação de uma obra literária tão magistral com a postura pessoal de seu autor, especialmente quando essa postura flerta com ideologias que, historicamente, carregam o peso do sofrimento de milhões de pessoas?
A resposta a essa questão, por si só, é desafiadora e resvala em um dilema que não pode ser contornado facilmente: onde reside o verdadeiro compromisso de um escritor? Deve sua obra refletir um código moral aceito socialmente, ou sua função está, antes de tudo, na preservação da integridade estética, independente das convicções políticas e ideológicas de quem a criou? No caso de Céline, a pergunta torna-se ainda mais complexa, pois sua genialidade literária não pode ser dissociada da polêmica que envolve suas escolhas pessoais durante os anos da Segunda Guerra Mundial.
No entanto, a questão da ética na literatura não é uma problemática recente e tampouco pode ser resolvida de maneira simplista. Ao longo do século 20, diversos críticos se debruçaram sobre a relação entre a criação artística e a moralidade, cada um oferecendo uma perspectiva diferente sobre o papel do autor e o impacto de suas convicções no valor de sua obra. Dois dos mais importantes teóricos dessa época, Roland Barthes e Theodor Adorno, abordaram a questão da ética na arte de maneiras profundamente distintas, e suas visões, ao serem postas lado a lado, ajudam a iluminar o impasse que a figura de Céline representa para a crítica literária.
Barthes, sempre em busca de desconstruir as fronteiras tradicionais entre o autor e a obra, coloca a ênfase na forma, como se o texto em si fosse a única entidade autônoma que sobrevivesse à morte do autor. Para ele, a ética de um escritor, mais do que uma questão de posicionamento político, é uma questão formal: ela está na capacidade de criar uma obra que desafie e transcenda as convenções. A arte, segundo essa lógica, existe em um espaço próprio, independente das ações e das crenças daquele que a produz. Assim, a obra literária se torna uma entidade autossuficiente, desvinculada das vicissitudes da biografia de seu criador.
Já Adorno, cujo pensamento foi profundamente marcado pelas tragédias da Segunda Guerra e pela reflexão sobre os horrores do fascismo, aborda a questão de forma distinta. Para ele, a arte não pode estar dissociada da história, da política e da ética. A obra literária é, em última instância, um reflexo da sociedade que a gerou e, por isso, deve ser analisada à luz das tensões e contradições do mundo real. Em sua famosa obra “Dialética do Esclarecimento”, escrita em parceria com Max Horkheimer, Adorno questiona justamente a relação entre a produção cultural e a indústria do entretenimento, onde a arte é transformada em mercadoria, perdendo seu poder de crítica. Nesse contexto, a obra de arte genuína seria aquela que consegue escapar dessa lógica de consumo e resistir à banalização. E, por isso mesmo, Adorno vê a arte como um espaço de resistência ética, uma forma de confrontar as ideologias que perpetuam a opressão e a barbárie.
No entanto, ao observar a recepção crítica de Céline, surge um contraste curioso. Barthes, sempre disposto a defender a autonomia da forma literária, se vê em posição de advogar em favor de Céline, argumentando que a grandeza estética de “Viagem ao Fim da Noite” se impõe sobre qualquer julgamento moral que se possa fazer do autor. Essa defesa aparece em “O Grau Zero da Escritura” e, especialmente, em “Aula”, um livro precioso que registra sua aula inaugural no Collège de France. Para Barthes, o texto vive por si só, e é a sua estética que deve ser julgada, não a conduta política de seu criador. Adorno, por outro lado, adota uma postura silenciosa em relação a Céline, como se o colaboracionismo do autor o tornasse indigno de qualquer consideração crítica dentro de seu pensamento.
A divergência entre essas duas posturas críticas não está apenas no tratamento da figura de Céline, mas reflete uma concepção mais ampla do papel da arte e do artista. Barthes, em seu esforço de despersonalizar o texto, dissolve o autor nas camadas de linguagem e estilo, enquanto Adorno, profundamente marcado pelos traumas históricos, busca uma arte que esteja à altura das responsabilidades éticas e sociais que o tempo exige.
Esse contraste, embora não explícito, está presente de maneira eloquente na recepção crítica de Céline. Enquanto alguns, como Barthes, celebram sua genialidade formal, outros, como Adorno, parecem evitá-lo, como se sua participação nas sombras do colaboracionismo nazi o tornasse inaceitável no panteão dos grandes escritores do século 20.
A defesa de Roland Barthes a Louis-Ferdinand Céline representa um ponto central na discussão sobre a autonomia da obra literária em relação às convicções políticas e ideológicas de seu autor. Para Barthes, a única ética que importa na criação artística é a ética da forma. Em sua visão, o escritor tem o direito de se dissociar das expectativas morais da sociedade, uma vez que sua principal responsabilidade está em criar algo que desestabilize, que perturbe as convenções estéticas. Barthes vê na obra de Céline essa capacidade única de transcender os limites impostos pela moralidade cotidiana, destacando-se como um exemplo poderoso daquilo que ele denomina “escrita moderna”.
Em “Viagem ao Fim da Noite”, Barthes enxerga uma ruptura profunda com as formas tradicionais de representação literária. A narrativa fragmentada, o fluxo de consciência e o pessimismo radical de Céline transformam o romance em uma expressão do caos do século 20. Segundo Barthes, o romance de Céline não apenas desafia as normas estéticas, mas também dissolve a dicotomia entre o belo e o feio, abrindo caminho para uma nova ética que reside inteiramente na forma literária, desvinculada de qualquer julgamento sobre a vida pessoal do autor. É essa dissociação entre o autor e sua obra que permite, em última instância, que a arte se mantenha viva e irrestrita.
Porém, essa defesa formalista de Barthes encontra oposição em outros críticos, que veem a ética como um aspecto inegável na avaliação de qualquer produção cultural. No Brasil, nomes como Leila Perrone-Moisés, Leda Tenório da Motta e Luiz Costa Lima reconheceram o valor estético de Céline. Na contramão deles, Jaime Ginzburg, em “A Guerra como Problema para os Estudos Literários”, faz uma análise que contesta essa separação radical entre forma e ética. Para Ginzburg, a guerra e seus horrores são parte integrante da produção artística, e a postura de colaboração de Céline com o regime nazista não pode ser ignorada na avaliação de sua obra.
Ginzburg aponta que há um limite moral que a crítica literária não pode ignorar. O colaboracionismo de Céline ultrapassaria esse limite. Em suas palavras, “a forma literária é inseparável da sua inserção histórica”, sugerindo que o contexto em que uma obra foi criada também deve ser levado em conta na análise crítica.
Outro crítico que vai além da dimensão estética para atacar diretamente a figura de Céline é Luiz Nazário, em seu ensaio “Céline e seus adoradores”. Nazário não hesita em reduzir Céline a um colaboracionista cujas ações durante a guerra não podem ser separadas de sua obra. Ele argumenta que a genialidade literária de Céline foi usada como uma cortina de fumaça por seus defensores, como Barthes, para desviar a atenção de seu papel vergonhoso na história. Nazário afirma que os esforços de defender Céline como um grande estilista literário são, em última análise, tentativas de justificar o injustificável: a adesão de um grande escritor ao pior dos crimes, a cumplicidade com o genocídio.
No ensaio, Nazário critica duramente os que, como Barthes, tentam relativizar ou mesmo ignorar a colaboração de Céline com o nazismo. Para ele, o impacto moral de tais ações não pode ser apagado pela qualidade estética de seus textos. Ele se pergunta: até que ponto podemos separar o artista de sua obra? Nazário sugere que o exemplo de Céline coloca essa questão no centro de qualquer debate sério sobre arte e moralidade, especialmente em um mundo que ainda carrega as cicatrizes da guerra e da opressão.
Essas vozes críticas demonstram que a defesa formalista de Barthes, embora poderosa, não é incontestável. O argumento de que a forma é a única ética que um autor deve enfrentar esbarra, no caso de Céline, na dura realidade de suas ações políticas. Como Ginzburg e Nazário sugerem, há uma tensão inevitável entre a estética e a ética que não pode ser simplesmente varrida para debaixo do tapete. Embora “Viagem ao Fim da Noite” seja inegavelmente uma obra-prima literária, sua criação e seu autor não podem ser totalmente dissociados de seu contexto histórico.
Assim, o contraste entre a defesa de Barthes e as críticas de Ginzburg e Nazário torna-se central para compreender o lugar de Céline na literatura. Se a estética é, de fato, a única ética que importa, como defende Barthes, então “Viagem ao Fim da Noite” deve ser celebrada sem reservas. Contudo, se aceitarmos a ideia de que a obra de arte está sempre implicada nas condições históricas e morais em que foi produzida, a figura de Céline torna-se muito mais problemática, como apontam Ginzburg e Nazário. Essa tensão entre a forma e a moralidade continua a ser um dos maiores dilemas na crítica literária moderna.
Adorno, com seu silêncio, deu a Céline o mais contundente de todos os ataques. Quando escreve “A posição do narrador no romance contemporâneo”, ele simplesmente omite Céline, como se a sua obra não tivesse lugar na discussão sobre a evolução da narrativa moderna. Esse silêncio não é apenas uma ausência acidental ou um esquecimento. Adorno, um dos maiores críticos do século 20, escolhe não mencionar Céline em um estudo que aborda precisamente os autores que transformaram o romance contemporâneo, um grupo no qual, incontestavelmente, Céline deveria figurar. Esse silêncio é, por si só, uma afirmação poderosa.
Adorno, profundamente comprometido com a filosofia da estética e a ética na arte, parecia entender que certas obras, por mais brilhantes que sejam em termos formais, podem ser moralmente inaceitáveis a tal ponto que sequer merecem ser citadas. Céline, o colaboracionista, o antissemita declarado, representava para Adorno uma figura tão comprometedora que sua menção tornaria qualquer análise viciada. Em vez de atacá-lo diretamente, Adorno opta pelo silêncio, o que, em muitos aspectos, é o ataque mais eloquente e eficaz. Ele reconhece a força da obra de Céline, mas ao mesmo tempo recusa-se a dar-lhe qualquer legitimidade ou espaço em sua discussão.
Este silêncio de Adorno serve como uma resposta implícita à defesa de Barthes. Enquanto Barthes postula que a única ética relevante para o escritor é a da forma, Adorno, sem sequer proferir uma palavra diretamente contra Céline, nos faz entender que uma obra, por mais inovadora e estilisticamente disruptiva que seja, não pode ser completamente dissociada de seu contexto moral e histórico. A ausência de Céline em um texto que busca compreender o papel do narrador no romance contemporâneo sugere que, para Adorno, as escolhas ideológicas e morais do autor interferem profundamente na validade de sua contribuição artística.
Adorno, com sua profunda análise da arte e do mundo que a circunda, parecia compreender que, embora Céline tenha contribuído enormemente para a renovação do romance com “Viagem ao Fim da Noite”, sua obra, imersa no contexto das suas escolhas colaboracionistas, não poderia ser separada desse peso moral. O colaboracionismo de Céline, para Adorno, era tão avassalador que anulava qualquer consideração estética isolada. Ao omitir Céline, Adorno envia uma mensagem poderosa: certas figuras, mesmo que talentosas, podem estar moralmente além do alcance da consideração literária séria.
Ao não mencionar Céline, Adorno preserva uma posição crítica que busca conciliar a estética com a responsabilidade ética, algo que ele via como essencial no mundo pós-Auschwitz. Em seu próprio trabalho, especialmente em “Dialética do Esclarecimento”, Adorno havia exposto como a barbárie e a cultura se entrelaçam de formas inesperadas e devastadoras. A obra de Céline, criada por um homem que apoiou diretamente um regime bárbaro, ilustra essa dialética trágica, onde a alta literatura se torna cúmplice de horrores inomináveis.
O silêncio de Adorno é, portanto, uma denúncia silenciosa, uma recusa em permitir que a genialidade estética apague a responsabilidade ética. Enquanto Barthes celebra a autonomia da forma, Adorno sugere, sem precisar dizer uma única palavra sobre Céline, que tal autonomia pode ser ilusória. Para Adorno, Céline, por mais brilhante que tenha sido, comprometeu-se de tal maneira com um mal irreparável que sua obra, no olhar de Adorno, não poderia ser apreciada com a mesma liberdade estética que Barthes propõe. O silêncio aqui fala mais alto do que qualquer crítica verbal.
Não há uma resposta definitiva para a questão da relação entre ética e estética na obra de Louis-Ferdinand Céline. O confronto entre a defesa formalista de Barthes e o silêncio acusatório de Adorno revela a complexidade dessa discussão, que envolve tanto o valor intrínseco da arte quanto as implicações morais da vida do artista. Por um lado, “Viagem ao Fim da Noite” é inegavelmente uma obra que revolucionou o romance moderno, introduzindo uma linguagem brutalmente honesta e uma estrutura narrativa que rompe com as convenções de seu tempo. Por outro, as escolhas ideológicas de Céline levantam dúvidas sobre até que ponto podemos separar o autor de sua criação, especialmente quando sua vida pessoal contradiz tão violentamente os princípios éticos fundamentais de humanidade.
A defesa de Barthes, que insiste na ética da forma como a única que importa para o escritor, nos lembra que a arte, para ser livre, precisa desafiar convenções, inclusive morais. No entanto, o silêncio de Adorno, em sua recusa em sequer mencionar Céline, sugere que há limites para essa liberdade, e que o contexto histórico e ético em que uma obra é produzida não pode ser completamente ignorado. Entre essas duas posições, encontramos o campo de batalha da crítica literária contemporânea, que busca equilibrar o julgamento estético com a responsabilidade moral.
Céline, portanto, permanece uma figura divisiva. Sua genialidade literária continua a seduzir leitores e críticos, enquanto seu envolvimento com o colaboracionismo lança uma sombra que nunca poderá ser totalmente dissipada. Não cabe aqui estabelecer uma resposta final sobre se devemos, ou não, separar o autor de sua obra. O que podemos afirmar é que essa tensão entre estética e ética continuará a desafiar nossos critérios de julgamento, e talvez seja justamente essa falta de resolução que mantém viva a discussão sobre Céline e tantos outros artistas cuja obra transcende o simples prazer estético para nos confrontar com dilemas éticos fundamentais.