A série da Netflix que foi assistida 252 milhões de vezes se tornou a produção mais vista de toda a sua história Divulgação / Netflix

A série da Netflix que foi assistida 252 milhões de vezes se tornou a produção mais vista de toda a sua história

Será que Barry Sonnenfeld, ao conduzir “A Família Addams” nos anos 1990, suspeitava que sua visão daria origem a um legado tão expressivo? Naquela adaptação, o olhar firme e as tranças impecavelmente alinhadas de Wednesday Addams, então interpretada por Christina Ricci, cativaram fãs de todas as faixas etárias. A frieza cortante da personagem, acompanhada de um senso de humor quase macabro, criou um tipo de magnetismo tão poderoso que obscureceu a presença de outros membros daquela família inusitada. Não surpreende, portanto, que a interpretação de Ricci tenha se consolidado como parâmetro obrigatório para qualquer pessoa que se arrisque a revisitar a adolescente gótica mais icônica do audiovisual. No entanto, essa referência quase sagrada também ergue um obstáculo difícil de contornar: como incorporar o legado de Wednesday sem cair na pura repetição ou em tentativas ingênuas de superá-lo?

A série “Wandinha”, produzida pela Netflix com direção de Tim Burton em alguns episódios, apresenta uma solução ousada ao escalar Jenna Ortega como a figura central. Ortega, que já deu mostras de sua versatilidade em trabalhos como “You” e “Pânico”, abraça o desafio com uma abordagem que não se limita a repetir o que Ricci fez. Sua Wednesday revela facetas que os filmes anteriores não tiveram tempo de desenvolver, pois agora há oito capítulos para detalhar conflitos internos e construir tensões que vão além do sarcasmo eventual.

É uma tarefa exigente: manter o ar sombrio sem abrir mão de uma trajetória emocional capaz de segurar a atenção ao longo de toda a temporada. Ortega preenche esses requisitos com firmeza, usando ironia e introspecção como engrenagens narrativas bem ajustadas. Para completar, a presença de Christina Ricci no elenco — interpretando a enigmática Srta. Thornhill — age como um selo de aprovação silenciosa à nova estrela.

Apesar do brilho constante de Ortega, o local onde a história se desenrola merece ser destacado. A Academia Nevermore, habitada por criaturas igualmente peculiares (lobisomens, górgonas e sereias, entre outros), atenua a esquisitice particular que costumava diferenciar Wednesday do resto do mundo. Antes, boa parte da graça da Família Addams se sustentava no contraste entre a morbidez deles e a normalidade, gerando situações tão desconfortáveis quanto divertidas. Em Nevermore, esse contraste se dilui, pois quase todos ao redor de Wednesday também possuem traços incomuns.

Mesmo assim, a produção encontra formas de manter a essência da protagonista, principalmente ao explorar sua relação tumultuada com Morticia (Catherine Zeta-Jones), cuja figura majestosa exerce uma pressão incômoda na filha. Embora Zeta-Jones exiba desempenho convincente, sua química com Luis Guzmán como Gomez não atinge o patamar icônico observado na versão cinematográfica, sem que isso prejudique de forma irreparável o desenrolar do enredo.

No quesito estético, o estilo de Tim Burton permanece inconfundível: paletas sombrias, figurinos que beiram o fantástico e cenários onde cada detalhe sugere algo gótico ou misterioso. Em algumas passagens, essa exuberância corre o risco de encobrir momentos emocionais que poderiam ganhar ainda mais força com uma direção mais sutil. Mesmo assim, a produção consegue misturar investigação e ação, acompanhando Wednesday na tentativa de decifrar uma série de assassinatos. Embora alguns apontem semelhanças com “Harry Potter” — pela atmosfera estudantil e pelo suspense em torno de segredos —, “Wandinha” evita cair no óbvio ao investir na solidez do elenco e na própria força de sua protagonista, que segura a audiência mesmo quando o roteiro apresenta soluções menos inspiradas.

A harmonia entre humor e tensão fica evidente em situações como a cena de dança no baile da Academia, onde a expressividade corporal de Ortega materializa a oscilação entre fragilidade e poder que caracteriza sua Wednesday. O enredo, ainda que se torne previsível em determinadas viradas, guarda algumas surpresas que mantêm o interesse vivo. Além disso, a narrativa costura reflexões sobre exclusão e heranças históricas, sem deixar de lado o compromisso de entreter. Essa capacidade de unir leveza e reflexão reforça que a série não se limita a reciclar um ícone pop, mas busca aprofundar questões atuais.

No coração de tudo, a atuação de Ortega é o que fortalece a relevância de Wednesday como personagem. Ela encarna uma figura sombria que não abre mão de suas piadas letais, mas que também exibe contradições humanas suficientes para criar empatia. Mesmo quando o texto não favorece, sua presença magnética retém a atenção e comprova que é possível homenagear o passado sem ficar preso a ele. É isso que torna “Wandinha” um programa praticamente indispensável tanto para os admiradores de longa data da Família Addams quanto para quem se depara com esse universo agora.

Ao final, “Wandinha” consegue reacender o poder de atração dos Addams, equilibrando inovação e fidelidade às origens. Jenna Ortega se consolida como a MVP (most venomous predator) desta geração, conferindo uma vitalidade renovada a uma personagem que muitos acreditavam ter atingido seu auge definitivo. O humor ácido, o toque de terror e a estética sombria continuam presentes, prontos para conquistar novos seguidores e revigorar a mítica de Wednesday Addams, que permanece como referência incontornável no imaginário popular.


Série: Wandinha
Criador: Alfred Gough e Miles Millar
Ano: 2022
Gêneros: Comédia/Crime/Mistério/Fantasia
Nota: 8/10