O esquisitão que habita em mim uivou alto na tarde de 16 de janeiro de 2025. Terminava de revisar uma crítica sobre “Duna” (1984), a magistral adaptação de David Lynch (1946-2025) para a história de ficção científica da série de Frank Herbert (1920-1986), publicada entre 1965 e 1985, quando soube que o diretor havia falecido naquela mesma hora, rendendo-se ao enfisema que adquirira depois de um tabagismo inabalável de cerca de seis décadas. A série de incêndios florestais em Los Angeles, no sul da Califórnia, onde morava, decerto contribuiu para tirar o derradeiro fôlego de Lynch, que precisava de recorrer a balões de oxigênio para atividades tão extenuantes como deslocar-se do quarto para o banheiro, mas tenho para mim que o busílis foi mesmo a posse de Donald Trump, com quem tinha em comum apenas a cabeleira fulva, marcada para a segunda-feira 20, dia em que iria completar 79 anos.
O cineasta, um dos mais inteligentemente subversivos de sua geração, era bem chegado a uma ironia, o que fica claro em “What Did Jack Do?”. A visão pessimista e mesmo eivada de manifesto niilismo acerca da condição humana, parte do DNA artístico de Lynch, desvela-se ao longo dos dezessete minutos em que o próprio diretor quer saber o que aprontou o tal Jack, um macaco-prego suspeito de assassinato, e o céu é o limite para o devaneio poético desse filósofo improvável.
Meu primeiro contato com o talentoso e hermético David Lynch remonta ao Mesozoico, quando, em tardes de calor e secura, cabulava a aula no cursinho pré-universitário e ia me enfurnar no Cine Brasília (sem ar-condicionado) para assistir a maravilhas como “Eraserhead” (1977) e “O Homem Elefante” (1980), alegorias sobre um mundo cruel no qual padrões devem ser seguidos à risca, sob pena do isolamento mais covarde. Em “Duna”, Lynch chega a ser profético ao insinuar a ascensão de déspotas que lançariam o mundo numa era de escuridão, e os monstros subterrâneos que tornam-se feras sanguinolentas ao menor ruído soam como gatinhos adoráveis diante dos rumos que a América e, por conseguinte, o planeta deverão tomar sob Trump 2. Com “What Did Jack Do?”, Lynch parece ter querido aliviar um pouco — “aliviar um pouco” para o seu histórico, claro.
Aqui, o diretor-roteirista mantém o preto e branco de “Eraserhead” e “O Homem Elefante”, apelando a uma atmosfera noir entre artificiosa e onírica. Toda a ação transcorre num único cenário, um restaurante, onde o próprio Lynch, todo de negro, dá a impressão de ziguezaguear, acompanhando a fumaça do cigarro. Entra em quadro Jack, e o cineasta passa a fazer-lhe perguntas a respeito de um possível crime que atribuem-lhe, e tudo vai adquirindo um ar de deliciosa farsa no momento em que se nota a projeção da boca de Jack Cruz no focinho do animal.
Fica-se sabendo que o macaco nutre uma paixão não correspondida pela galinha Tootatabon, algo como “quebra de tabus” em hindi, e muito do que Lynch, essa esfinge agora para sempre silenciada, pode ter tido em mente com seu curta. Muita gente pode lembrar-se de “What Did Jack Do?” apenas por causa da performance engraçadinha do mascote ao entoar “True Love’s Flame”, a canção escrita por Lynch e interpretada por Cruz, mas esse obscuro tratado sobre as ditas perversões sexuais que nos aprisionam em cidades sem sonhos merece um olhar mais cuidadoso. O mundo que há em Lynch é infinito.
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