Baseado em livro de Ian McEwan, o maior romance do século, indicado a 150 prêmios e vencedor do Oscar, está na Netflix Divulgação / Focus Features

Baseado em livro de Ian McEwan, o maior romance do século, indicado a 150 prêmios e vencedor do Oscar, está na Netflix

Entre as narrativas mais intricadas da ficção contemporânea, poucas se igualam à complexidade emocional e estrutural de “Desejo e Reparação”, a adaptação cinematográfica de Joe Wright para o romance de Ian McEwan. Publicada originalmente em 2001, a obra literária é uma sinfonia de perspectivas e tempos, que encontra na direção minuciosa de Wright e no roteiro habilidoso de Christopher Hampton uma tradção fiel, embora profundamente transformada pela linguagem visual. O filme, ambientado em diferentes épocas, mas enraizado na Inglaterra de 1935, é um estudo sobre culpa, memória e as camadas de realidade que a narrativa pode construir e desconstruir.

Desde o início, o longa estabelece um jogo de metalinguagem, conduzido pela presença marcante de Briony Tallis, interpretada com notável maturidade por Saoirse Ronan. Briony é simultaneamente protagonista e arquiteta da história, uma narradora cuja confiabilidade é colocada em xeque desde a primeira cena. Sua peça de teatro, “As Provações de Arabella”, emerge como um microcosmo da própria narrativa, refletindo o desejo de controle que levará a consequências devastadoras. Em um jantar que se aproxima, enquanto os serviços são preparados para receber dez convidados, a rotina dos Tallis é entrecortada por interações carregadas de tensão e pequenos indícios de que algo grandioso e terrível está por vir.

A fotografia de Seamus McGarvey, com sua iluminação sutil e paleta de tons pastéis, intensifica a atmosfera de fragilidade que permeia o primeiro ato. Briony, inquieta e imaginativa, observa pela janela uma cena aparentemente idílica entre sua irmã mais velha, Cecilia (Keira Knightley), e Robbie (James McAvoy), o filho do empregado da família que ascendeu graças ao patrocínio dos Tallis. No entanto, essa visão parcial é filtrada pela própria mente de Briony, cuja inocência conflita com uma imaginação poderosa e descontrolada.

A relação entre Cecilia e Robbie desafia as convenções de sua época, oferecendo um contraponto à rigidez patriarcal que moldou a educação de Cecilia. Apesar de criada para ser a epítome da esposa submissa e da mãe ideal, Cecilia encontra em Robbie um igual, um homem que compartilha de seus desejos e aspirações. Contudo, essa conexão é tragicamente interrompida quando Briony interpreta mal uma série de eventos, culminando na acusação de Robbie por um crime que ele não cometeu. Essa ruptura é o cerne do filme, um momento de devastadora injustiça que ecoará por toda a narrativa.

James McAvoy e Keira Knightley entregam performances arrebatadoras, especialmente nas cenas em que a esperança e o desespero se alternam com intensidade crescente. McAvoy, em particular, captura a dualidade de Robbie — um homem dividido entre a indignação pela injustiça sofrida e a esperança de um futuro ao lado de Cecilia. Knightley, por sua vez, encarna a complexidade de Cecilia, uma mulher que luta contra as expectativas impostas a ela, mas que também é tragicamente presa a essas mesmas normas.

Quando o filme avança para os horrores da Segunda Guerra Mundial, Wright utiliza a vastidão do cenário para refletir a separação emocional e física entre os personagens. O plano-sequência na praia de Dunquerque é um dos momentos mais memoráveis do cinema contemporâneo, não apenas por sua ambição técnica, mas pela forma como encapsula a desesperança coletiva e pessoal que permeia a história. Nesse ponto, Briony, agora interpretada por Romola Garai, tenta expiar seus pecados, mas suas ações, por mais sinceras que sejam, nunca parecem suficientes para desfazer o dano que causou.

É apenas no último ato, quando Vanessa Redgrave assume o papel de uma Briony envelhecida, que a verdade é revelada em sua totalidade. Em uma entrevista, a autora consagrada confessa que o final feliz imaginado para Cecilia e Robbie nunca aconteceu. Eles, de fato, sucumbiram às tragédias da guerra, e a reconciliação descrita nas últimas páginas de seu livro é apenas um gesto de redenção pessoal, um último ato de criação para corrigir o irremediável.

Com “Desejo e Reparação”, Joe Wright entrega uma obra que não apenas traduz a sofisticação do texto de McEwan, mas também o reimagina de maneira cinematográfica. Cada elemento — atuações, fotografia, trilha sonora de Dario Marianelli — converge para criar uma experiência imersiva e profundamente emocional. No centro de tudo está a questão da narrativa: quem tem o direito de contar uma história? E até que ponto podemos confiar nela? Essas perguntas ecoam muito depois dos créditos finais, solidificando o filme como um dos mais impactantes de sua época.

Filme: Desejo e Reparação
Diretor: Joe Wright
Ano: 2007
Gênero: Drama/Romance
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★