O filme mais fascinante e desconcertante de David Lynch: impossível ser a mesma pessoa depois de assistir Divulgação / Paramount Pictures

O filme mais fascinante e desconcertante de David Lynch: impossível ser a mesma pessoa depois de assistir

A inquietação que habita os jovens que almejam romper com a monotonia das cidades pequenas e construir um destino próprio é quase universal. Não se trata apenas de buscar independência ou amigos, mas de encontrar um significado ao lidar com as próprias escolhas e consequências. Contudo, a vida nem sempre respeita esse desejo; por vezes, atropela como um caminhão desgovernado, deixando para trás apenas fragmentos de uma tentativa de controle.

“Veludo Azul“ (1986) se insere como uma experiência visceral que desafia a percepção do público. Sob a batuta de David Lynch, em plena efervescência criativa, a narrativa confronta os espectadores com interpretações díspares: para uns, um neo-noir de impacto restrito; para outros, um mergulho poético e onírico em territórios raramente explorados. Lynch equilibra violência, erotismo e devaneio, deixando uma marca de autor inconfundível, que divide opiniões e provoca reações extremas. Essa abordagem garante que o filme permaneça um ponto de referência em discussões sobre a arte cinematográfica.

O filme tece uma trama que mistura as inquietações da juventude com os conflitos de uma sociedade americana marcada por paranoia e moralismo exacerbado. A história se passa em Lumberton, uma cidade aparentemente pacata, mas repleta de segredos sombrios. Lynch, com sua visão mordaz, transforma esse cenário em um microcosmo que reflete as contradições dos Estados Unidos dos anos 80. Sua narrativa, carregada de ironia e críticas sutis, transcende fronteiras culturais, convidando o público global a refletir sobre seus próprios contextos.

Isabella Rossellini dá vida a Dorothy Vallens, uma mulher cuja dor e submissão representam um sacrifício extremo em nome da família. Sua transformação em alguém que encontra prazer no papel de objeto dos desejos mais obscuros desafia o espectador a compreender as camadas da personagem. O contraponto surge em Jeffrey Beaumont, interpretado por Kyle MacLachlan, que retorna à cidade natal devido à doença do pai e se vê puxado para um mistério envolvendo Dorothy. Sua descoberta no apartamento dela é um dos momentos mais impactantes, levando a narrativa a um território sombrio e psicológico.

Lynch costura suas influências, evocando Hitchcock de maneira evidente, especialmente na sequência em que Beaumont espia Dorothy e Frank Booth (Dennis Hopper) através do armário. O suspense e a tensão remetem ao mestre britânico, mas Lynch desloca o foco da morte para o sexo, criando um novo eixo de horror e fascínio. A justaposição entre voyeurismo e exposição conduz a trama para um crescendo em que violência e erotismo se entrelaçam de forma perturbadora.

A dualidade entre o caos e a serenidade é simbolizada por Lumberton. No desfecho, Lynch propõe um retorno às aparências bucólicas, mas não sem antes deixar claro que o conflito entre inocência e depravação é inescapável. A atuação dos protagonistas, especialmente Rossellini e MacLachlan, confere densidade emocional à narrativa, enquanto Laura Dern, como Sandy, representa a luz que equilibra o abismo.

As críticas de pseudointelectualismo que vez ou outra recaem sobre Lynch desmoronam diante de sua obra. “Veludo Azul“ é a síntese de um autor que desafia convenções sem sacrificar a substância. Premiado em 2020 com um Oscar honorário, Lynch reafirmou seu papel como um dos pensadores mais provocativos de Hollywood, transformando sua reputação excêntrica em símbolo de genialidade. Hoje, talvez ele encare tudo isso com a leveza de quem já se diverte com o próprio legado.

Filme: Veludo Azul
Diretor: David Lynch
Ano: 1986
Gênero: Drama/Suspense/Terror
Avaliaçao: 9/10 1 1
★★★★★★★★★