Harry Dean Stanton, ator cuja carreira atravessou mais de seis décadas, entregou em “Lucky” sua última e mais íntima interpretação. O filme, dirigido por John Carroll Lynch, revela a essência de um homem que enfrenta a inevitabilidade do tempo, enquanto explora com delicadeza a mortalidade e o sentido da existência. No entanto, o longa também registra outra marca indelével: a presença singular de David Lynch, que, além de atuar no filme, compartilhou uma parceria artística e pessoal profunda com Stanton. Hoje, com o falecimento de Lynch, “Lucky” se torna um tributo ainda mais significativo, imortalizando o talento de dois gigantes do cinema.
No coração da narrativa está Lucky, um nonagenário que vive sozinho em uma cidade árida no Arizona. Sua rotina, tão banal quanto simbólica, reflete a monotonia e os pequenos rituais de quem já percorreu longa jornada: exercícios matinais, café na lanchonete, cigarro após cigarro e noites assistindo a novelas em sua modesta casa. Stanton interpreta o personagem de forma visceral, com uma autenticidade que transcende a tela. A convivência de Lucky com outros personagens, especialmente Howard, interpretado por David Lynch, fornece momentos de sutileza emocional que são tão enigmáticos quanto profundos.
Howard, um homem que lamenta o desaparecimento de seu cágado, insere uma camada metafórica na história. Como em muitas das obras dirigidas por David Lynch, o simbolismo se entrelaça com o cotidiano, e o que parece ser apenas um detalhe trivial assume uma dimensão maior. O cágado, que representa resiliência e continuidade, serve como uma alegoria para a própria jornada de Lucky: lenta, mas inevitável. A performance de Lynch carrega o mesmo mistério e excentricidade que marcaram sua carreira como cineasta, e sua presença em “Lucky” não apenas enriquece a narrativa, mas também sublinha sua conexão pessoal com Stanton, com quem colaborou em filmes como “Veludo Azul” e “Coração Selvagem”.
O roteiro minimalista de Logan Sparks e Drago Sumonja permite que o filme seja conduzido pelas nuances de suas performances. Stanton encarna Lucky de forma tão natural que, em certo momento, a distinção entre ator e personagem desaparece. As interações, como a conversa com um veterano de guerra (Tom Skerritt) ou o embate com um vendedor de seguros (Ron Livingston), são carregadas de vulnerabilidade e honestidade, expondo medos, arrependimentos e momentos de pura humanidade. Cada linha de diálogo é um convite à introspecção, transformando a simplicidade da trama em uma obra de rara profundidade.
Mas é a relação entre Lucky e Howard que mais ecoa. David Lynch, com sua voz peculiar e presença magnética, injeta humor e melancolia em cada cena. O desaparecimento do cágado pode parecer um detalhe excêntrico, mas representa uma reflexão mais ampla sobre perda e apego, temas que ressoam especialmente com o público ao considerar a ausência de Lynch a partir de agora. Sua atuação em “Lucky”, portanto, é mais do que um papel; é uma despedida que encapsula sua contribuição única ao cinema.
Embora o filme seja uma meditação sobre envelhecer, ele também encontra espaço para momentos de rara beleza. Um dos destaques é a cena em que Lucky canta “Volver, volver” em espanhol durante uma festa de aniversário. A câmera se aproxima do rosto de Stanton, capturando cada rugosidade como uma prova do peso do tempo e da vida vivida. É um momento que transcende o enredo, transformando-se em uma declaração sobre a própria condição humana.
“Lucky” não é sobre grandes acontecimentos, mas sobre os detalhes que compõem a vida. As interações triviais, como regar um cacto ou reclamar na lanchonete, ganham profundidade em um contexto que reflete o significado do cotidiano. É uma obra que exige paciência, mas recompensa com uma honestidade emocional rara, especialmente na era de narrativas aceleradas e repletas de efeitos visuais. John Carroll Lynch conduz a história com uma sensibilidade que valoriza o silêncio e o que não é dito, permitindo que as emoções aflorem de forma orgânica e genuína.
Com a partida de Harry Dean Stanton em 2017 e, agora, de David Lynch, “Lucky” ganha uma dimensão ainda mais simbólica. O filme celebra não apenas o fim de uma jornada, mas também a importância dos laços que construímos ao longo dela. Stanton e Lynch, cada um à sua maneira, moldaram o cinema com suas contribuições inigualáveis, e esta obra se torna um testemunho desse legado.
Enquanto os créditos finais rolam, o espectador é deixado com uma sensação de perda e gratidão — pela vida, pelas histórias e pelo impacto desses artistas que, mesmo em sua ausência, continuam a inspirar e a provocar reflexões. “Lucky” não é apenas um filme; é uma homenagem à impermanência, ao valor das conexões humanas e à arte como um refúgio diante da inevitabilidade do tempo.
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