Quase quatro décadas após seu lançamento, a versão de “Duna” dirigida por David Lynch segue despertando debates intensos. Inspirada na saga literária de Frank Herbert (1920-1986), a obra, publicada entre 1965 e 1985, alcançou status de cult tanto na literatura quanto no cinema. A história, situada em um universo paralelo onde especiarias ampliam percepções e permitem viagens dimensionais, aborda temas complexos como o impacto das drogas e a ascensão de regimes totalitários. Um dos vilões, curiosamente, possui um nome quase idêntico ao de Saddam Hussein, ditador cuja sombra marcou o século XX. Profético, o filme antecipa a chegada de uma era de trevas, liderada por figuras despóticas que espelham os conflitos e desafios do nosso mundo.
Em 10191 d.C., o duque Shaddam IV, interpretado por José Ferrer, enfrenta um declínio comparável à derrocada de líderes reais, enquanto a Terra, esgotada, cede lugar a Arrakis. Este planeta desértico, com uma paisagem de tons vermelhos reminiscentes de Marte, abriga vermes gigantes que protegem as preciosas especiarias, fonte de poder e disputa. Nesse cenário, Paul Atreides, vivido por Kyle MacLachlan, emerge como o messias dos oprimidos fremen, liderando uma revolta contra os bárbaros usurpadores. A obra de Lynch, apesar das críticas ferozes e injustas, mantém sua essência épica e um olhar profundo sobre os personagens, explorando suas contradições e motivações em detalhes.
Mesmo em comparação com a releitura moderna de Denis Villeneuve, que se beneficia de recursos tecnológicos avançados, o “Duna” de Lynch destaca-se por sua abordagem visceral e singular. Sua interpretação da obra de Herbert é marcada por escolhas autorais ousadas, especialmente no retrato do barão Vladimir Harkonnen, vivido por Kenneth McMillan. Este vilão grotesco, flutuante e perverso, personifica a decadência moral da narrativa. Lynch, que já havia desafiado convenções em “Eraserhead” e “O Homem Elefante”, utiliza “Duna” para aprofundar sua visão sobre a natureza humana, transcendendo as limitações de uma indústria voltada para o visual e a superficialidade, características que já dominavam o cinema na era dos videoclipes.
Ao longo do tempo, o “Duna” de Lynch permaneceu como um testemunho da resistência criativa frente às mudanças incessantes na cultura e no cinema. Se o próprio diretor admite falhas na obra, sua relevância transcende essas imperfeições, mostrando que, em um mundo em constante transformação, há valor em revisitar o passado e reconhecer suas virtudes. David Lynch, ao abordar o lado sombrio da existência, criou um legado que desafia o efêmero e ecoa como um estudo fascinante sobre a fragilidade humana.
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