Em 1995, Lars von Trier e Thomas Vinterberg chegaram à conclusão que o cinema poderia significar mais que orçamentos nababescos coroados por efeitos tecnológicos de última geração. Era o começo do Dogma 1995, um movimento artístico que voltava-se para o interior do homem, o que, por conseguinte, implicaria produções mais enxutas e mais genuínas, sem a necessidade de subterfúgios estéticos para que se pudesse chegar ao coração selvagem do público.
Quarto de século mais tarde, a iniciativa de Von Trier e Vinterberg segue frutificando, e um nó na garganta insiste em se perpetuar ao longo dos 126 minutos de “Ficaremos Bem”, um drama de família da pesada como, talvez, só mesmo os escandinavos saibam fazer. Há alguns anos, a norueguesa Maria Sødahl foi diagnosticada com um câncer já avançado, cujo tratamento a obrigara a interromper uma carreira que despontava como uma das mais auspiciosas da nova safra de diretores de seu país. Sødahl sobreviveu, claro, e transpôs para seu filme boa parte da agonia da finitude próxima, fantasma que exorcizou da melhor forma possível.
Dias antes do Natal, Anja, uma coreógrafa de sucesso, volta consagrada de uma turnê no exterior, mas um pouco incomodada com dores de cabeça renitentes e uma dificuldade para ler. Ela volta a sua médica, que lhe dera um diagnóstico de câncer de pulmão no ano anterior, e agora fica sabendo que tem um enorme tumor cerebral, envolto por um edema que torna qualquer tentativa de intervenção cirúrgica muito mais delicada. Com cuidado, Sødahl entra num universo de ressonâncias magnéticas, tomografias e remédios fortes, situando Anja numa família numerosa de três filhos, três enteados e Tomas, o marido diretor de teatro, que parece mais chocado que ela.
Andrea Bræin Hovig e Stellan Skarsgård conduzem a história cada qual defendendo uma postura específica de seu personagem. Enquanto Anja lida com sua nova realidade com assombroso pragmatismo, dando as explicações necessárias ao núcleo mais jovem, com idades entre dez e vinte e poucos anos, numa das cenas mais tocantes do longa, o personagem de Skarsgård policia-se para não demonstrar fragilidade na presença da esposa, telefonando para os parentes e amigos mais chegados, além do pai idoso vivido por Einar Økland.
O longa passa a orbitar no campo gravitacional desbravado por Ingmar Bergman (1918-2007) em “Cenas de Um Casamento” (1974), até encontrar seu próprio eixo com um humor sutilíssimo, harmonizado pela fotografia cheia de nuanças escuras de Manuel Alberto Claro. O filme é Hovig e Skarsgård, mas a diretora também se sai bem nos momentos em que concentra o enredo em coadjuvantes como a oncologista interpretada por Ingrid Bugge, ou a Julie, a filha de Anja e Tomas, de Elli Rhiannon Müller Osborne. “Ficaremos Bem” é a prova de que sempre pode existir uma esperança para o cinema. Bendito Dogma 95.
★★★★★★★★★★