Em 2015, a franquia australiana de George Miller revisitou seu universo distópico com um vigor inesperado, trinta anos após o terceiro capítulo. Este novo capítulo revela uma paisagem devastada, onde a hierarquia social é cruelmente delineada pela escassez de recursos e pela ausência de divindades, permitindo que as piores inclinações humanas prosperem.
No centro desse universo brutal está Immortan Joe, interpretado por Hugh Keays-Byrne com uma intensidade que combina grotesco e profundidade. Ele domina não apenas pela força, mas pelo controle de um recurso vital: a água, um bem que ele monopoliza em um deserto sem fim. Joe mantém um harém e um sistema de reprodução que reduz as mulheres a instrumentos de sua dinastia deformada, expondo a face mais brutal de uma tirania fundamentada em necessidades primárias.
Miller aproveita seu passado como médico para injetar uma visceralidade única em cada cena. Essa experiência transparece nas sequências que exibem a fragilidade do corpo humano em contraste com a brutalidade de um mundo desolado. O roteiro, coassinado por Brendan McCarthy e Nico Lathouris, eleva o gênero ao articular uma crítica filosófica incisiva sobre as falhas da civilização. Joe, apesar de repugnante, não é um desvio isolado; sua tirania encontra eco em um padrão histórico de opressão validada por sociedades inteiras. Miller constrói esse retrato ao se inspirar em líderes como Mao, Stalin e Hitler, criando paralelos que situam Immortan Joe como um arquétipo universal do poder desmedido.
Nesse universo de miséria e luta, Max é capturado e transformado em um recurso, alimentando o ciclo de violência e dominação. Sua interação com Furiosa, uma rebelde marcada tanto física quanto emocionalmente, forma o núcleo emocional da narrativa. Furiosa desafia Joe não apenas por vingança pessoal, mas por uma visão de redenção coletiva. Sua luta se destaca pela combinação de força física e uma resiliência moral que contrasta com a desumanidade ao seu redor. A personagem, vivida com intensidade por Charlize Theron, sintetiza a mensagem feminista que perpassa a obra sem nunca obscurecer sua brutalidade essencial.
A fotografia de John Seale amplifica essa dualidade, unindo o sublime e o grotesco em um espetáculo visual que desafia convenções. O deserto, tratado quase como uma entidade viva, consome tudo ao seu redor em um cenário que mistura o hiper-realismo com um simbolismo opressor. A cena de abertura, em que Max e seu veículo se fundem ao ambiente em uma coreografia de caos, define o tom de um filme onde a estética serve ao propósito maior de explorar a desordem ética de seu universo.
Quando a narrativa se aproxima de seu clímax, as motivações de Joe e Furiosa colidem de forma explosiva, revelando um subtexto profundo sobre controle e liberdade. A perseguição que se segue não é apenas um espetáculo de ação, mas uma metáfora das tensões humanas mais universais. Miller explora a ideia de sororidade com delicadeza, transformando Furiosa em uma figura de redenção. Sua jornada a coloca como heroína definitiva, desafiando as convenções de gênero e assumindo um papel central em um filme ostensivamente masculino.
Essa tetralogia não é meramente um exercício de estilo, mas um alerta sombrio sobre as escolhas que a humanidade faz diante da escassez e do poder. Enquanto “Estrada da Fúria” projeta um futuro apocalíptico, ele também reflete a realidade contemporânea de forma perturbadora. A mensagem que permeia a obra é clara: sem liderança responsável ou uma revolução ética, o caminho à frente pode ser irreversível. E sem figuras como Furiosa, o destino da humanidade parece selado em um deserto literal e moral.
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