Los Angeles carrega uma dualidade inquietante. Poucas cidades no mundo podem se gabar de reunir policiais e criminosos nos mesmos espaços, onde dividem histórias sombrias e, às vezes, até as mesmas companhias. É um lugar onde crimes brutais, amplamente noticiados, permanecem sem solução por décadas, alimentando um mistério coletivo que a transforma, mais do que nunca, na “Cidade das Mentiras”. Este cenário, fascinante e perturbador, serve de pano de fundo para “City of Lies”, um filme que explora, com intensidade, as feridas abertas da violência urbana e da corrupção sistêmica.
A obra centra-se no assassinato do rapper Christopher George Latore Wallace, conhecido como The Notorious B.I.G., morto a tiros em 9 de março de 1997, menos de um ano após a trágica morte de Tupac Shakur. Dois ícones da música, dois jovens negros cujas vidas foram interrompidas de maneira brutal, refletem o caos de uma sociedade profundamente marcada por desigualdades raciais e pela inércia das instituições. A abordagem do diretor Brad Furman não é apenas cinematográfica, mas também investigativa, mergulhando em uma conspiração que transcende o caso específico, tocando nas feridas de uma nação.
No centro dessa narrativa está Russell Poole, interpretado com intensidade por Johnny Depp. Poole é um detetive obcecado, não pela glória de resolver um caso de alto perfil, mas por um senso de dever quase quixotesco. Seu comprometimento, alimentado por uma urgência autodestrutiva, torna-o uma figura trágica e fascinante. A obsessão de Poole é ancorada em uma busca por justiça que ele não verá se concretizar, já que sua morte precoce em 2015 deixou o mistério sem resolução definitiva. Depp entrega uma performance contida e visceral, contrastando com a abordagem metódica de Jack Jackson, interpretado por Forest Whitaker, um jornalista investigativo cujo ceticismo inicial é desafiado pela complexidade do caso.
O roteiro de Christian Contreras, baseado no livro de Randall Sullivan, começa de forma impactante: Voletta Wallace, mãe de B.I.G., exige respostas em um depoimento frio e contundente. Sua dor, revestida de indignação, ecoa como um lembrete constante da impunidade. Essa introdução não apenas humaniza a tragédia, mas também estabelece o tom sombrio da narrativa. À medida que Jackson revisita reportagens antigas e entrevistas com figuras-chave do LAPD, ele descobre um sistema corroído, onde as linhas entre justiça e corrupção se confundem perigosamente.
“City of Lies” encontra seus momentos mais marcantes nas interações entre Depp e Whitaker, que dão vida a discussões densas sobre ética, racismo e poder. Contudo, é em cenas pontuais, como o confronto entre Frank Lyga e Kevin Gaines, que o filme atinge seu ápice. Interpretados por Shea Whigham e Amin Joseph, esses personagens expõem as tensões explosivas dentro do próprio departamento de polícia, em uma sequência que culmina em tragédia. Furman utiliza essas cenas para revelar a complexidade das relações interpessoais e institucionais, sem nunca recorrer a soluções fáceis ou a retóricas moralistas.
Embora o filme tenha dificuldades em equilibrar seus aspectos investigativos com as cenas mais dinâmicas, ele ainda oferece uma experiência intrigante. A escolha de priorizar os diálogos introspectivos entre Depp e Whitaker pode frustrar espectadores em busca de ação, mas garante uma profundidade rara em narrativas do gênero. A direção de Furman, embora funcional, se destaca ao explorar as nuances do ambiente urbano, utilizando a cidade como um personagem vivo, repleto de sombras e contradições.
No entanto, algumas falhas de continuidade e um ritmo irregular comprometem a fluidez da narrativa. Apesar disso, “City of Lies” mantém sua relevância, especialmente para quem aprecia histórias que desafiam a simplicidade e mergulham nos labirintos da condição humana. São 112 minutos que exigem atenção e, em troca, oferecem um olhar provocativo sobre os bastidores de um dos casos mais emblemáticos e controversos da história recente. A Cidade dos Anjos, afinal, continua a esconder mais do que revela, deixando no ar uma pergunta inquietante: estamos preparados para encarar a verdade quando ela finalmente vier à tona?
★★★★★★★★★★