Criar filhos talvez seja a maior aventura a que alguém pode se lançar, e por eles decerto se aprende que há sempre uma vasta chance de tornar um pouco mais elástica a fronteira do que se pode tolerar ou não. As dores do crescimento — e, ao que tudo indica, das decisões equivocadas — atropelam um marmanjo cheio de inseguranças em “O Mentiroso”, uma sátira ao estabelecido, à masculinidade frágil, à suposta plenitude da vida familiar, tudo bem misturado ao pastelão de um dos mestres do gênero. Jim Carrey está longe de ser unanimidade, mas são raros os comediantes que dominam a arte do improviso e movem-se com tamanha desenvoltura do humor físico para lances assumidamente dramáticos, como se assiste no filme de Tom Shadyac, já um clássico do besteirol. O roteiro de Paul Guay e Stephen Mazur sobe e desce, oscilando de intensidade para mostrar as duas faces de um tipo suspeito, forçado a se emendar por um expediente mágico.
Carrey encarna Fletcher Reede, um advogado yuppie em franca ascensão na carreira, que, como todo advogado, precisa mentir para manter-se no jogo. Fletcher está divorciado da ex-mulher, Audrey, há algum tempo, e parece que Max, o filho de cinco anos, também foi incluído na separação. O garoto coleciona decepções paternas e numa das cenas que melhor catalisam o politicamente incorreto da trama, na escola, quando perguntado em que trabalha o pai, Max diz que ele é um mentiroso —certo, a blague perde muito da força com a tradução. O caldo entorna quando, de tão absorto com o trabalho, Fletcher perde a festa de aniversário do filho. Esse é o gancho perfeito para que Shadyac inclua o pedido de Max, para que o pai não conte nenhuma lorota por um dia inteiro. E pedido de uma criança cujo aniversário o pai não comparece decerto é lei para as forças que regem o universo.
Fletcher passa boa parte do que resta de “O Mentiroso” aprendendo a se policiar e, como abdicar de um hábito que já compõe sua natureza é missão para uma vida, ele tenta guardar a língua dentro da boca, mas assim mesmo se enrola. Ele atua no conturbado divórcio de uma cliente acusada de adultério e logo começa a meter os pés pelas mãos ao tecer comentários sobre a aparência e a volúpia da mulher, e então Carrey começa a se parecer com o Máskara, o bancário socialmente inepto que transforma-se numa figura histriônica e cativante do longa de Chuck Russell. Paulatinamente, o protagonista une caretas às reflexões sobre a dureza da paternidade num mundo em que as aparências sempre hão de enganar, e ninguém pode fazer nada a não ser… enganar também. A certa altura, a parceria entre Carrey e Justin Cooper transcende o filme, e só queremos que eles voltem às boas. Ainda que com uma ou outra mentirinha inocente de vez em quando.
★★★★★★★★★★