Concebido em plena pandemia de Covid-19, “Armageddon Time” marca a transição de James Gray para o formato digital, uma adaptação imposta por restrições orçamentárias decorrentes da crise sanitária global. Para preservar a essência nostálgica que permeia a trama, Gray uniu-se ao renomado diretor de fotografia Darius Khondji, utilizando lentes da década de 1970. Esse recurso visual evoca com precisão a atmosfera da época retratada no filme, cujo título se inspira na canção homônima da banda The Clash, simbolizando um período de transformações e incertezas.
Ambientado no início da década de 1980, o filme se desenrola em um momento histórico decisivo nos Estados Unidos, marcado pela ascensão de Ronald Reagan à presidência. Seu discurso de “renovação nacional” contrasta com os temores persistentes da Guerra Fria, compondo o pano de fundo da história de Paul Graff (Banks Repeta), um garoto judeu de classe média que vive em Nova York. Criado por uma família carinhosa, Paul enfrenta desafios típicos da idade, como rebeldia e dificuldades escolares. Sua conduta impulsiva frequentemente o coloca em situações delicadas, seja tentando impressionar amigos ou desafiando a autoridade escolar.
No centro da narrativa está a amizade entre Paul e Johnny Davis (Jaylin Webb), um colega afro-americano que vive em condições socioeconômicas extremamente precárias. Criado por uma avó idosa e sob a constante ameaça de ser entregue ao sistema de adoção, Johnny enfrenta uma realidade de instabilidade que contrasta fortemente com a de Paul. Enquanto Paul se beneficia da posição de sua mãe, Esther (Anne Hathaway), uma figura influente na comunidade escolar, Johnny é alvo de desconfiança e punições injustas, mesmo em situações em que não é culpado.
A história toma um rumo significativo quando Paul é transferido para uma escola particular de elite, um ambiente dominado por alunos brancos e uma cultura de disciplina implacável. Nesse novo contexto, Paul experimenta os benefícios de seu privilégio familiar, enquanto Johnny permanece excluído de tais oportunidades. Esse contraste não passa despercebido a Paul, que se sente desconfortável diante da homogeneidade e da falta de diversidade no novo ambiente escolar.
A morte de Aaron Rabinowitz (Anthony Hopkins), avô de Paul, intensifica os conflitos internos do garoto. Mentor carismático e defensor de valores como empatia e justiça, Aaron era o alicerce moral de Paul. Sua perda abala profundamente a família: Esther mergulha em uma depressão debilitante, enquanto Irving (Jeremy Strong), um pai severo e pragmático, assume o papel central na educação do filho. Sem o avô para guiá-lo, Paul passa a questionar os princípios que sustentam sua vida, dividindo-se entre os benefícios de seu status privilegiado e a emergente consciência das desigualdades ao seu redor.
Mesmo diante de realidades tão distintas, Paul e Johnny encontram abrigo em sonhos compartilhados. Paul aspira tornar-se pintor, enquanto Johnny nutre o desejo de ser astronauta da NASA. Essas ambições, embora distantes de suas circunstâncias atuais, os impulsionam a planejar uma fuga para Orlando, buscando um lugar onde possam perseguir seus objetivos sem as limitações impostas por Nova York.
Longe de ser apenas um relato de amizade improvável, “Armageddon Time” explora desigualdades raciais e sociais que moldam vidas de forma implacável. Enquanto Paul conta com a rede de apoio familiar para corrigir seus erros, Johnny enfrenta uma sociedade que lhe oferece poucas chances de escapar do destino que lhe foi imposto. O contraste entre suas trajetórias evidencia as barreiras estruturais que perpetuam as desigualdades, ressaltando a injustiça de um sistema onde o local de nascimento pode determinar o futuro.
James Gray utiliza o cenário político e social dos anos 1980 para desnudar divisões profundas nos Estados Unidos. Por meio da experiência de Paul, o filme reflete sobre o despertar de uma consciência social em um contexto de privilégios conflitantes. A relação com Johnny simboliza a necessidade urgente de enfrentar as injustiças que atravessam gerações, propondo um exame crítico do papel da empatia e da justiça na construção de uma sociedade mais equânime.
Mais do que um drama sobre crescimento pessoal, “Armageddon Time” desafia o mito do “sonho americano”, expondo como ele se fragmenta diante das desigualdades estruturais. A amizade entre Paul e Johnny serve como um espelho da realidade de muitos, lembrando que meramente esforçar-se não é suficiente para superar as barreiras impostas por um sistema desigual. O filme convida o público a refletir sobre as consequências de suas ações e privilégios, apontando para a responsabilidade coletiva na busca por um futuro mais justo.
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