Uma forma de escrita vem ganhando mais espaço ao enfrentar os desafios para contar histórias na atualidade. Ela responde à questão de como se pode narrar hoje e como expor uma realidade complexa e confusa. Saem de cena o tradicional narrador em primeira pessoa (memórias, depoimentos, monólogos, diários) e também aquele em terceira pessoa (o ponto de vista neutro, a simulação de objetividade, o sujeito que sabe tudo). As histórias passam a ser montadas por meio de várias vozes que remetem ao teatro, evidentemente, e a um tipo novo de prosa.
O livro “Meio do Céu” (2024), de Ubiratan Muarrek, é uma manifestação dessa linhagem contemporânea da escrita feita por vozes. Ao mesmo tempo, é uma peça teatral para ser lida e ouvida. Se houver um dia encenação num palco, são outros quinhentos. A obra vem se juntar à escrita provocativa e feita apenas por vozes do romance “Solução de Dois Estados” (2020), de Michel Laub, e da peça “Rainha Lira” (2022), de Roberto Schwarz. Trata-se de uma busca por outras maneiras de dar conta de um presente instável e difícil de ser compreendido.
Flora Süssekind observou bem esse movimento de vozes que ela chamou de “coralização” na literatura contemporânea. As obras são construídas na forma de um coral, diz a crítica, com vozes harmônicas e, na maioria das vezes, dissonantes. É uma escrita que se apropria com frequência de “vozes, gritos, sons de buzina, barulho da cidade, tiros, às vezes palavras de ordem, cantoria, sons de passos, fuga e perseguições, às vezes movimentos de quase dança”, assinala a crítica. Até os ruídos têm significado, e isso está muito presente em “Meio do Céu”.
“A intensificação das irrupções corais num país em que se assiste ao estilhaçamento do pacto social formulado na Constituição de 1988 e se amplia a consciência da frágil sustentação de uma convivência minimamente democrática em meio ao crescimento da intolerância e à sedimentação de grupos neofacistas”, assinala Flora Süssekind, em seu livro “Coros, Contrários, Massa” (2022), publicado no auge do recente transe político do país e que mapeia a produção cultural da atualidade.
É nesse contexto de “coralização” que pode ser lido o livro de Muarrek — autor dos romances “Corrida do Membro” (2007) e “Um Nazista em Copacabana” (2016). Mas o que as vozes de “Meio do Céu” expõem aos leitores e leitoras? Primeiro, emerge a sonoridade de que já foi um ideal passado de sociedade (a do açúcar, oriunda de Pernambuco). O livro é uma reconstituição da fala pernambucana, com a reiteração de expressões regionais em diálogos duros e até mesmo impossíveis entre os personagens.
Tempo fora dos eixos
“Meio do Céu” reúne uma comunidade de expatriados brasileiros em Londres, no dia 25 de julho de 2000. Gente que tem origem em Pernambuco. Eles estão na cidade na data queda em Paris de um avião Concorde — símbolo de uma época e de um mundo que logo mudaria de rumo. A aeronave explodiu nos arredores da capital francesa. Pouco mais de um ano depois, ocorreriam os ataques de 11 de setembro em Nova York.
Os personagens de Muarrek falam o tempo todo de bombas em Londres, como estas fossem fantasmas na cidade, e olham o tempo todo para o céu da cidade. Ao olhar para cima, estariam à espera de algo ou de algum acontecimento?
O livro tem a estrutura de uma peça em “dois atos e meio”. Fica claro que as conversas jamais se completam, pois elas emperram seguidamente. Os personagens estão sempre truncando o diálogo. Paira uma noção de incomunicabilidade — tema do chamado “teatro do absurdo” no século 20. Daí uma certa sensação de se estar lendo falas sem sentido, mas beirando o cômico. Há, por exemplo, a reiteração de uma pergunta na boca de vários personagens ao longo do livro: “que hora é essa?” Parece haver uma desorientação temporal que nunca se resolve.
O primeiro ato é o encontro marcado ou inesperado de Greta (uma mulher branca) e Sofitel (uma negra). Ambas são pernambucanas e se conhecem desde a infância. Há uma indeterminação de nomes, as personagens falam sem parar, mas jamais conseguem dialogar. No meio de um “sem sentido” cômico, brota o passado e surge o que interessa: as estranhas relações daquela sociedade do açúcar. Um passado que Greta certamente preferiria deixar de lado, porém volta com força e violência simbólica.
“Tu tens a tez de porcelana de tua avó Maria Vitória…”, provoca Sofitel, na conversa com Greta. No diálogo, aflora o ressentimento mútuo que revela um mundo por trás daquela cena corriqueira: “Cresci contigo. Tu pra sair do sobrado e pôr o saltinho na grama da fazenda já era um suplício! Tu nem pegasse um ônibus”, diz Sofitel. Aos poucos, vai se montando uma comédia sinistra, bem à brasileira. É preciso acompanhar com atenção as alfinetadas que uma personagem dá na outra, porque o golpe mortal pode vir a qualquer momento.
A relação amarga de Sofitel e Greta/Gretchen tem um DNA na sociedade do açúcar. Um imaginário feito com esmero nas obras de Joaquim Nabuco, Gilberto Freyre, João Cabral de Mello Neto, José Lins do Rego e chega até ao cinema de Kleber Mendonça Filho. O que parece doce, um certo Brasil utópico, revela uma violência brutal. Como nota Flora Sussekind, os corais da ficção atual capturaram a situação da comunidade que não tem mais um “comum” para compartilhar.
Fausto em cena
O segundo ato aprofunda a forma “coral”. Aparece o personagem Fausto, pai de Greta. Só o nome dele já remete ao que é sinistro, à clássica figura da literatura alemã, presente também no romance “O Fastio do Diabo” (2022), de Ana Luisa Escorel. Ele é sempre aquele que pode assumir diversas formas. Fica claro que Londres não pode ser o espaço de uma nova comunidade — os barulhos que vêm da rua, as sirenes, tudo implode a mínima harmonia do coral de vozes. E o personagem Nígel aparece para romper qualquer conversa. Não tem mais diálogo possível.
Uma das utopias brasileiras nas últimas décadas foi justamente a fuga do país. O sonho de se livrar da vida local, mas a mudança carrega os traços da mesquinhez nacional em gestos, atos e falas. A toda hora, os personagens de “Meio do Céu” questionam a insolência de Sofitel, que teima em sair do seu lugar, e mostram os aspectos sombrios do jeito brasileiro de ser.
“Como tu permite tanta liberdade a essa moça, Gretchen? (olha em volta, aflito) Só tem uma mesa nessa casa? Uma mesa, apenas? Não tem outra? Lá no quartinho não tem mesa pra ela? O que ela diz, essa moça”, reclama Fausto à filha.
O último ato (chamado de “meio”) é a sequência contada pela metade e que gera lacunas e mais lacunas. O diálogo se dá entre Sofitel e o irmão Isaías, que prefere ser chamado do Jonathan na Inglaterra. A conversa fica ainda mais estranha. Eles são os personagens negros da peça, ganham vozes que destoam ainda mais do coral e parecem em fuga (da vida? da polícia?). O coral de “Meio do Céu” só tem potência para produzir dissonância. De novo, o passado emerge com força e de forma reveladora.
“Um vadio que nem tu! Nunca prestou pra colher [cana], pra plantar, pra queimar, pra jardinar, nem pra nada… nunca pregou um prego na parede pra mãinha… tu é só doideira, só rabo de saia”, diz Sofitel para Isaías. A utopia pernambucana chegou a ser a defesa de “antagonismos em equilíbrio”, ideia pensada por Gilberto Freyre, mas hoje se parece mais à consumação do choque. Antagonismo só gera desequilíbrio. A começar pela linguagem, as relações entre as pessoas (e os personagens) só podem ser tensas, incômodas e incomuns.
É frequente que se interprete o famoso teatro do absurdo como algo sem sentido, mera imitação da impossibilidade de haver conversas ou diálogos. A orelha de “Meio do Céu” faz referências a Samuel Beckett, e a sinopse para divulgação do livro cita a influência de Harold Pinter. Mas é possível ler e ouvir o livro de Muarrek como uma forma de expor a realidade, indo do drama à comédia. Anos atrás, Roberto Schwarz notou que o teatro de Beckett é um exemplar e profundo de comédia pastelão e absurda para criar, na verdade, um novo tipo de realismo.