Obra-prima do cinema, com Ben Affleck e Samuel L. Jackson, chegou à Netflix e é o melhor filme que você assistirá este mês Divulgação / Paramount Pictures

Obra-prima do cinema, com Ben Affleck e Samuel L. Jackson, chegou à Netflix e é o melhor filme que você assistirá este mês

Pode tardar, mas sempre chega a hora em que meninos precisam se tornar homens, sobretudo nas circunstâncias de adversidade perene e obstinada que fazem da pobreza uma zona especialmente brumosa na vida de alguém. Todos sabemos que o dinheiro move o mundo, bem como também não é original pensar que um décimo da fortuna negociada numa única tarde na Bolsa de Nova York é o suficiente para alimentar comunidades inteiras do Zimbábue, o país mais pobre do mundo, por meses. 

Com a teoria da relatividade, um dos trabalhos mais célebres de Albert Einstein (1879-1955), publicada em 1905, o alemão naturalizado americano menciona a natureza elástica do tempo, já que as leis da física são iguais para todo sistema de referência inercial, isto é, um lugar do qual se saia a fim de se alcançar dado ponto no universo. Einstein nunca diria isso, porém não furtar-se-ia a concordar que tempo é dinheiro, como se assiste no ótimo “Fora de Controle”. Num filme qualquer, um acidente de trânsito entre dois marmanjos poderia virar uma sucessão de murros e pontapés, mas aqui Roger Michell (1956-2021) vai juntando aspectos inusitados das jornadas existenciais dos dois personagens até que aquele bate-boca inicial não é mais só uma desavença sobre quem banca ou não o conserto.

Gavin Banek está numa escalada constante rumo ao topo do mundo. Esse ambicioso advogado de 29 anos, cheio de estratégias não só para vencer como para dominar os adversários, foi imbuído da missão de convencer um multimilionário a entregar o controle de sua instituição de caridade ao escritório ao qual Banek é subordinado, cujo mandachuva é seu sogro, Stephen Delano. Tudo corre como ouro sobre azul, ele consegue a procuração, e voa para o tribunal, onde já o esperam os outros representantes da causa e o juiz. Ele leva o documento numa pasta laranja, e no caótico fluxo nova-iorquino, seu carro é imprensado e vai se deslocando para a outra faixa, onde está Doyle Gipson, que também vai para o fórum. 

Como dois corpos não ocupam o mesmo lugar concomitantemente, o veículo de Gipson se choca contra tonéis num canteiro improvisado, e os dois são obrigados a se enfrentar. O roteiro de Chap Taylor e Michael Tolkin frisa as diferenças entre os dois homens, um branco jovem e um preto de meia-idade, que pergunta se o outro e está ferido e apanha do chão suas coisas, mas é praticamente enxotado, porque Banek tem pressa e prefere assinar um cheque em branco e deixar que Gipson providencie o reparo a seu modo a esperar o guincho e a seguradora e preencher formulários. Como Gipson quer fazer tudo do jeito certo, sai de mãos abanando, no meio da estrada, com o debochado “Mais sorte da próxima vez!” do sujeito mais jovem. Mas essa frase ganha ares de uma maldição, que retorna para a boca de onde foi proferida.

No tribunal, Banek se dá conta de que Gipson ficara com a tal pasta laranja, e pensa que seu consorte involuntário não faria objeção alguma para devolvê-la, mas não sabe que, por ter se negado a dar-lhe uma carona, ele perdera a audiência na qual resolver-se-ia sua questão, o pedido de divórcio, do qual a esposa só desistiria se conseguisse o empréstimo para uma casa nova para ela e os filhos, com quem ela deseja mudar-se para o Oregon, “do outro lado do planeta”, segundo ele. A subtrama da separação iminente de Gipson movimenta todo o longo restante da trama, além, claro, da quantia que conseguira levantar e que some, depois de Banek contratar um funcionário corrupto da Receita e zerar a conta de um pai de família abandonado por mulher e filhos. 

Numa empreitada bem diferente do “Um Lugar Chamado Notting Hill” (1999) que o consagrou, Michell tem o condão de falar do peso das escolhas com leveza, mencionando também a força do que não se comanda. Ben Affleck e Samuel L. Jackson levam um jogo de gato e rato no qual jamais deixam de incluir o público, até que a verdade se impõe da forma mais traumática e mais justa. Todos sabemos que isso é improvável, quase impossível muitas vezes, e ainda assim cremos. Michell sempre foi meio bruxo.

Filme: Fora de Controle
Diretor: Roger Michell
Ano: 2002
Gênero: Ação/Thriller
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★
Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.