Com 259 indicações e 95 prêmios, o filme se consagrou como um dos mais premiados da história, está no Disney+ Divulgação / Disney +

Com 259 indicações e 95 prêmios, o filme se consagrou como um dos mais premiados da história, está no Disney+

Darren Aronofsky narra um delirantemente suntuoso conto de busca obsessiva pelo sucesso em “Cisne Negro”. A história de uma bailarina escolhida para substituir a estrela cadente de uma companhia de dança que passa a manifestar distúrbios psiquiátricos, tão obcecada se torna em atingir o ponto máximo de sua performance como protagonista numa adaptação de “O Lago dos Cisnes” (1876), o balé dramático em quatro atos do russo Piotr Ilitch Tchaikovsky (1840-1893), inspirado num conto do alemão Johann Musäus (1735-1787), guarda muito mais que sofisticação, apuro estético, reflexões altamente filosóficas sobre o talento e o papel do artista num mundo feito de coisas descartáveis. Aronofsky tira do roteiro magistral de Andres Heinz, Mark Heyman e John J. McLaughlin indícios que vão levando o público a temer pela saúde mental de Nina Sayers, a épica personagem central encarnada por Natalie Portman, ao mesmo tempo que esconde sua intransponível solidão atrás de sorrisos ternos e olhares furtivos, num jogo de gato e rato que fascina quem assiste. E talvez não haja nenhuma outra atriz que galvanize com tamanha perfeição a santidade e a torpeza latente de uma mulher como ela.

Pelo que o diretor põe em tela, Nina já vinha experimentando crises, e o motivo pode ser a mãe, também uma bailarina, agora aposentada, que dedicara a vida ao ofício e por alguma razão teve de abdicar da carreira. Erica, a personagem de Barbara Hershey, transfere para a filha todas as frustrações e, por óbvio, todas as muitas expectativas de ascensão. As duas só se separam quando Nina toma o metrô até o Lincoln Center e vai ensaiar a versão de Thomas Leroy para o espetáculo concebido por Tchaikovsky, o primeiro de uma temporada em que pretende “reinventar” os clássicos. 

Nesse movimento, Aronofsky aproveita para dissecar as figuras que orbitam à volta do tirânico Leroy, começando por Beth MacIntyre, a veterana quase escorraçada por ele. Numa participação afetiva distribuída em dois momentos pontuais, Winona Ryder surge como um ídolo de barro que se estilhaça, primeiro em praca pública, no fausto do jantar no qual Nina é anunciada como a nova primeira bailarina, e mais tarde na solidão mórbida de um quarto de hospital, depois de ter se jogado na frente de um ônibus. Beth nunca fora páreo para Nina, e aos poucos ela nota que a inimiga é mesmo outra.

“Cisne Negro” equilibra-se numa linha fina de tensão e segurança, que faz o filme balançar entre Nina e Lily, sua antípoda, uma dançarina que chega de San Francisco e tem de sobra tudo quanto nela falta. A autoconfiança de Lily chega a ser acintosa para Nina, e Aronofsky passa a erguer seu filme na contraposição entre as duas, cujo ponto de contato é Thomas. Enquanto instila os muitos conflitos internos de uma, ele afaga a a outra — e não apenas metaforicamente —, tudo, à primeira vista, com objetivos técnicos.

Existe em Nina um potencial autodestrutivo que Thomas detona e uma força da natureza que ele liberta, ao passo que sua lasciva e nada calculada protégée sente-se desimpedida para voar mais alto que um cisne do oeste da Rússia. Não à toa as melhores cenas são as que reúnem Portman, Vincent Cassel e Mila Kunis, ainda que o retrato da relação quase incestuosa entre Nina e Erica, com Hershey vibrando no mesmo diapasão de loucura que a personagem central, seja um dos vários filmes dentro do filme.

Quiçá Aronofsky seja o cineasta que esgaravate com mais delicadeza as vulnerabilidades e as imundícies do espírito humano, conforme se assiste desde sua estreia, em “Pi” (1998), seguida de “Réquiem para um Sonho” (2000), “Fonte da Vida” (2006), “O Lutador” (2008) ou “Mãe!” (2017). Aqui, o diretor mira a luta de uma mulher para consolidar-se na jornada profissional que escolhe, como fizeram de modo jocoso David Frankel em “O Diabo Veste Prada” (2006), ou Mike Nichols (1931-2014) no já antológico “Uma Secretária de Futuro” (1988). À medida que “Cisne Negro” aproxima-se do final e Aronofsky apela ao realismo fantástico para a metamorfose de Nina e ela torna-se, afinal, aquilo que sempre fora, mas sufocava, Portman justifica seu Oscar de Melhor Atriz e lembra-nos que a verdadeira arte é sacrifício. Pode ir-se o artista, mas seu sangue nunca deixa de correr.

Filme: Cisne Negro
Diretor: Darren Aronofsky
Ano: 2010
Gênero: Drama/Suspense
Avaliaçao: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★
Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.