O cinema indiano transcende os estereótipos de melodramas exagerados e musicais coloridos, revelando uma indústria rica e multifacetada. Muito antes de D.W. Griffith (1875-1948) revolucionar a narrativa cinematográfica com “O Nascimento de Uma Nação” em 1915, diretores como N.G. Chitre e Dadasaheb Phalke, pioneiro do cinema indiano, já haviam dado seus primeiros passos com “Shree Pundalik” (1912). Esse longa-metragem mudo retratou a história do santo Pundalik, baseado em um texto de Ramrao Kirtikar, marcando o início do que hoje conhecemos como Bollywood. A cultura da Índia, moldada por sua diversidade imensa e por uma população de quase 1,4 bilhão de pessoas, encontra no cinema um espelho para seu cotidiano, suas tradições religiosas e sua vastíssima pluralidade.
Esse retrato multifacetado da Índia é o que permeia “Histórias Incomuns” (2021), tetralogia que explora o país além das superficialidades, revelando uma realidade tão complexa quanto fascinante. Sob a direção de Shashank Khaitan, Raj Mehta, Neeraj Ghaywan e Kayoze Irani, o filme inicia com “Amante”, uma história onde o drama e a violência se entrelaçam para discutir identidade e poder. Jaideep Ahalwat encarna Babloo Bhaiyya, um homem atormentado por segredos e preso a um casamento simbólico com Lipakshi, filha de um político influente. O surgimento de Raj, filho do motorista, revela as emoções reprimidas do casal, culminando em uma análise profunda sobre as dores do amor e as limitações impostas por convenções sociais. Lipakshi, interpretada por Fathima Sana Shaik, emerge como a grande vítima dessa trama, expondo a subordinação feminina como um tema recorrente ao longo dos contos.
Em “Brinquedo”, Raj Mehta leva a domínio masculino ao extremo. Meenal, vivida por Nushrratt Bharuccha, luta contra a miséria enquanto sofre abusos do patrão Vinod Agarwal para garantir o mínimo conforto para sua irmã. O curta expõe a brutal desigualdade social da Índia, onde a pobreza extrema afeta mais de um terço da população. A relação entre castas, classes e poder surge de forma cruel e impactante, retratando uma realidade que desafia a compreensão de quem está de fora. Maneesh Verma interpreta o patrão abusivo com frieza, enquanto o elenco secundário reforça a intensidade dramática da narrativa, colocando em evidência a luta por sobrevivência em um sistema excludente.
Os dois contos finais, “Beijo Molhado”, de Neeraj Ghaywan, e “Não Falado”, de Kayoze Irani, abordam temas mais intimistas, como o amor não correspondido e a relação entre pais e filhos. No primeiro, uma mulher vive um romance unilateral com sua colega casada, que por sua vez não se identifica com os papéis sociais que escolheu. O segundo explora o drama de uma jovem que enfrenta a perda progressiva da audição enquanto lida com o desinteresse do pai, que se recusa a aprender a língua de sinais. Apenas o amor materno é suficiente para garantir que ela tenha as condições necessárias para viver com dignidade. Esses segmentos enfatizam a dimensão pessoal dos conflitos, destacando as vulnerabilidades humanas em contextos sociais opressores.
“Histórias Incomuns” não apenas celebra as riquezas culturais da Índia, mas também apresenta seus desafios de forma honesta e sem retoques. O trabalho dos quatro diretores imprime ao filme um caráter singular, mostrando o caos organizado das ruas, a calorosa hospitalidade do povo e as marcantes desigualdades sociais. A sensação de pertencimento que o longa proporciona é inegável, como se a Índia fosse um microcosmo onde o mundo inteiro pudesse se refletir. O resultado é uma obra provocativa e indispensável para quem deseja compreender a complexidade do país.3
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