O estruturalismo é a arquitetura subjacente à leitura crítica — a estrutura que mantém de pé qualquer interpretação séria, disciplinada e rigorosa da literatura. Aquele que se intitula crítico literário sem dominar as ferramentas oferecidas por nomes como Genette, Barthes, Todorov e Lévi-Strauss equivale a um médico que opera sem compreender a anatomia humana: é a pura aposta no improviso, uma temeridade. Mais do que um método, o estruturalismo é um modo de enxergar a obra literária como um sistema vivo, uma engrenagem precisa de signos, códigos e funções que interagem para criar sentidos múltiplos e profundos. Ignorar essa abordagem é negar à literatura a sua materialidade e dimensão formal, e reduzir o crítico a um amador de opiniões soltas e indefensáveis. É somente com essas ferramentas em mãos que se pode transformar a crítica de mera impressão subjetiva para ciência da leitura, posicionando a análise literária como disciplina séria e indispensável. Sem o estruturalismo, critica-se o vapor; com ele, radiografa-se o texto — e é esta a verdadeira função do crítico literário.
Há um afresco de opiniões que se acumulam sobre “Meridiano de Sangue”. Muitas vezes navegamos sob o manto do improviso e do entusiasmo, raramente acompanhados por ferramentas críticas que esclareçam as camadas desta obra tão discutida quanto incompreendida. Se o romance de Cormac McCarthy já conquistou um lugar no cânone contemporâneo por seu impacto temático e estilístico, falta ainda que se abra a sua arquitetura ao grande público, e não só à meia dúzia de especialistas da academia que leem as revistas acadêmicas. Mostrar, com um olhar técnico que revele o engenho e o esforço por trás de sua composição, as filigranas do livro. O mérito deste texto é menos o de convencer, e mais o de tentar iluminar e esclarecer.
Na esteira de uma obra em que violência e linguagem se entrelaçam em cordas indissolúveis, as categorias narrativas propostas por Gérard Genette e Roland Barthes oferecem-se como instrumentos de precisão quase cirúrgica. Longe de nos limitarem a um exercício puramente formal, essas ferramentas lançam luz sobre como McCarthy transforma a crueza de seu tema em uma máquina literária impecável, onde cada escolha narrativa sustenta os sentidos mais profundos da trama. Por meio delas, temos acesso não ao que o romance diz apenas, mas ao como: um aspecto tão essencial quanto frequentemente esquecido.
Que se retire, portanto, a ideia de que este texto é mais uma resenha de gostos e impressões. O objetivo não é estimar o impacto emocional da leitura — embora ele seja inegável —, mas demonstrar que a grandeza de “Meridiano de Sangue” reside tanto no talento de seu autor quanto no rigor de seu ofício. Não é a inspiração, sozinha, que move a escrita de McCarthy; há ali o trabalho do ourives e do arquiteto, que lapida a brutalidade do mundo até torná-la literária. Estudo de tempo, de voz, de ritmo, de símbolos: é sob essa lente que o romance se expõe a partir de agora.
Que técnica se torne, aqui, a amiga da arte, não sua detratora. Para Barthes, em “S/Z”, o texto é um campo de forças que organiza seus sentidos como uma composição polifônica. McCarthy, seguindo essa lógica, transforma cada cena de poeira e sangue em um movimento de narrativa que beira o inevitável. A análise estruturalista não restringe essa polifonia; ela apenas revela o coro sob as palavras.
É com essa premissa que nos lançamos ao coração do romance. A análise das categorias de tempo, modo, voz, e dos cinco códigos barthesianos não será apenas um exercício técnico, mas uma tentativa de capturar aquilo que faz de “Meridiano de Sangue” uma peça única. À medida que desvendamos sua estrutura, esperamos não explicar o texto, mas abri-lo ao olhar: para que ele não apenas seja lido, mas compreendido como uma obra tão racional quanto visceral.
Optamos deliberadamente por não citar trechos específicos para preservar o foco da análise: mais do que oferecer interpretações pontuais do texto, buscamos expor sua estrutura narrativa, desvelando as engrenagens que sustentam a obra. Nossa abordagem é comparável a uma radiografia: ao invés de sugerirmos diagnósticos, fornecemos ao leitor a chapa completa, permitindo que ele próprio, com as categorias interpretativas que propomos, retorne ao romance e o compreenda de maneira mais profunda. Esse método privilegia a autonomia do leitor e reconhece nele um interlocutor capaz, interessado em decifrar os códigos com rigor e inteligência. O crítico estruturalista e a teoria estruturalista são tudo, menos arrogantes: acreditamos no leitor, mas com reservas para o leitor presunçoso. Estudar é um gesto humilde, tanto que se estuda de cabeça baixa.
Além disso, a escolha de não incluir trechos atende ao objetivo de evitar a fixação da análise em passagens específicas, o que poderia reduzir a amplitude e a multiplicidade de leituras que o texto oferece. Ao apresentar as ferramentas analíticas em estado puro, o estudo torna-se mais versátil, aplicável a qualquer fragmento do romance. Isso permite que a totalidade da obra, com sua densidade simbólica e estilística, permaneça aberta às associações e interpretações que só podem emergir na experiência particular de leitura. A narrativa de McCarthy, rica em detalhes e texturas, exige esse espaço de liberdade.
É importante destacar que a ausência de citações não implica uma análise superficial; ela reflete a intenção de priorizar o panorama completo sobre a lupa. Ao nos afastarmos das análises fragmentadas, buscamos ressaltar a complexidade do livro enquanto sistema. Mais do que impor uma leitura, propomos uma gramática para o romance, oferecendo ao leitor ferramentas para que ele próprio nomeie, com maior precisão e competência, as experiências que a obra desencadeia. A análise se transforma em um convite ao diálogo, e não em um monólogo acadêmico.
Abordagem estruturalista com base em Gérard Genette e Roland Barthes
Publicado originalmente em 1985, “Meridiano de Sangue” é amplamente reconhecido como uma das obras literárias mais violentas, enigmáticas e profundamente filosóficas da literatura estadunidense contemporânea. Ambientado no oeste americano do século 19, o romance narra, em tom épico e apocalíptico, a jornada de um jovem anônimo — conhecido apenas como “o Kid” — que se junta ao grupo de mercenários liderado por John Joel Glanton e o misterioso Juiz Holden. A violência brutal, retratada de forma implacável, serve como pano de fundo para reflexões sobre a condição humana, o mal e a destruição.
No momento de sua publicação, a obra foi recebida de forma mista pela crítica, mas depois conquistou um espaço singular no cânone literário. Harold Bloom chegou a afirmar que o livro é “o mais importante romance americano posterior a ‘Moby Dick’”, estabelecendo sua relevância dentro da tradição de epopeias que confrontam o leitor com questões universais.
Dada a complexidade estrutural e filosófica da narrativa de McCarthy, uma análise com base nas categorias de Gérard Genette e Roland Barthes oferece ferramentas interpretativas confiáveis e rigorosas. Genette, em “Figures 3”, sistematiza elementos narrativos como tempo, modo e voz, permitindo uma desconstrução técnica da narrativa. Já Barthes, em “S/Z”, conceitua os “códigos narrativos”, iluminando a polifonia textual dos romances. Essas abordagens se mostram essenciais para desvendar a narrativa fragmentária, simbólica e densamente literária de “Meridiano de Sangue”.
Este ensaio pretende analisar “Meridiano de Sangue” por meio das categorias narrativas e dos códigos de leitura, argumentando que essas ferramentas analíticas ajudam a elucidar a relação entre o caos aparente da narrativa e a ordem estrutural que sustenta a obra.
Gerard Genette: categorias da narrativa
Tempo
Ordem — No romance, a ordem narrativa desafia a linearidade. A história não avança de forma cronológica, mas alterna entre saltos temporais, utilizando analepses (flashbacks) e prolepses (antecipações). Por exemplo, a narrativa retrocede ocasionalmente para explorar o passado do Juiz Holden, apresentando-o como uma figura quase mitológica. Essas rupturas da cronologia criam um efeito de desconexão temporal que reflete a atemporalidade do mal e da violência descritos.
Duração — A duração narrativa é assimétrica. Descrições do deserto e de paisagens áridas contrastam com passagens breves e elípticas de batalhas sangrentas. Esses intervalos oferecem ao leitor uma visão dicotômica entre a vastidão do espaço e a intensidade abrupta da ação humana. Segundo Genette, a duração está vinculada à manipulação do “ritmo narrativo”. Isso é exemplificado na cena da chacina dos comanches, descrita em imagens chocantes e detalhadas, enquanto o destino final do Kid é reduzido a um silenciamento quase elíptico — que oculta palavras, termos, sentidos ou trechos importantes.
Frequência — A repetição de eventos, como os massacres perpetrados pelo grupo de Glanton, enfatiza a ubiquidade do mal. A recorrência da figura do Juiz Holden em episódios cruciais do romance confere-lhe uma aura simbólica, quase divina, refletindo os ciclos incessantes de violência e a crítica que McCarthy parece dirigir à repetição histórica desse mal.
Modo
Distância — A descrição minuciosa das cenas é intercalada com lacunas narrativas que obrigam o leitor a preencher os vazios com inferências pessoais. Essa técnica cria uma interação entre objetividade (eventos apresentados sem julgamento explícito) e subjetividade (o impacto emocional provocado no leitor). A frase de abertura do romance, detalhada e documental, apresenta o universo narrativo de forma clínica, mas também simbolicamente carregada.
Focalização — O romance emprega predominantemente uma focalização externa. Em muitas passagens, McCarthy distancia-se das consciências individuais dos personagens, adotando uma perspectiva descritiva e impassível. Contudo, há momentos em que uma focalização interna surge, como nos raros instantes em que o Kid reflete sobre sua condição. Essa alternância adiciona complexidade à narrativa, desafiando o leitor a reconsiderar continuamente os papéis dos personagens e os eventos apresentados.
Voz
Pessoa narrativa — A narração de “Meridiano de Sangue” é conduzida por um narrador heterodiegético (externo à história), que adota uma postura onisciente, embora raramente revele emoções ou julgamentos explícitos. Esse distanciamento reforça a sensação de inevitabilidade e destino que permeia a obra, apresentando os personagens como agentes em um drama universal de destruição.
Níveis narrativos — A narrativa apresenta pouca fragmentação em camadas. O romance permanece fiel ao nível primário, sem histórias em quadro significativas. No entanto, o uso de discursos indiretos livres ocasionalmente interrompe a continuidade narrativa, adicionando vozes e perspectivas adicionais aos personagens.
Momento da narração — A narração é predominantemente posterior, relatando eventos após sua ocorrência. Porém, McCarthy ocasionalmente adota um tom profético, como se narrador e tempo narrado coexistissem em um espaço onírico e arquetípico. Isso cria uma justaposição entre presente e passado, contribuindo para a sensação de atemporalidade.
“Meridiano de Sangue” não é apenas uma narrativa sobre violência no oeste americano; é um romance que desafia a noção de linearidade e controle interpretativo. Sob as lentes de Genette e Barthes, vemos como McCarthy utiliza a estrutura narrativa para explorar o caos da história humana. Oscilando entre o épico e o apocalíptico, o romance exemplifica a convergência entre narrativa e reflexão filosófica.
Roland Barthes: códigos da narrativa
Código hermenêutico — Na obra de McCarthy, os enigmas não são apenas alicerces estruturais; tornam-se fendas no tecido narrativo pelas quais o leitor, desconfiado, busca orientações. Quem é o Juiz Holden? Um homem, um símbolo ou algo ainda mais vasto e intangível? Esta figura magnética concentra grande parte das dúvidas da narrativa. Sua ausência de passado e suas ações hiperbólicas criam um vácuo interpretativo que sustenta a tensão.
McCarthy trabalha com maestria a irresolução, um processo hermenêutico que Barthes descreve em “S/Z”: “O enigma retarda a narrativa sem interrompê-la”. No caso do Juiz, nem sua natureza nem seus objetivos se esclarecem completamente, mantendo o leitor aprisionado em uma hesitação semântica. Cada ação sua — um discurso inflamado, uma violência que beira o divino — mais confunde do que resolve.
Código semântico — O deserto em “Meridiano de Sangue” não é apenas um lugar: é um vasto silêncio que sussurra as fragilidades humanas. McCarthy confere a elementos aparentemente neutros — a aridez, o calor, as cores rubras do pôr do sol — uma densidade semântica que os transforma em signos de transitoriedade e brutalidade.
Barthes diria que o deserto, como um lexema persistente, multiplica leituras: espaço de exílio, palco do apocalipse ou figuração do vazio moral. O mesmo ocorre com as armas, que, na narrativa, transcendem sua funcionalidade. Transformadas em extensões do corpo, elas condensam poder e vulnerabilidade. McCarthy articula sentidos subterrâneos por entre as pedras e a poeira, exigindo que o leitor interprete até o inanimado.
Código simbólico — As oposições binárias organizam a narrativa como um grande sistema de forças contrastantes. Vida e morte entrelaçam-se em um jogo brutal, no qual o sangue derramado não é exceção, mas norma. Essas antíteses estruturam a lógica simbólica da obra: o poder absoluto do Juiz contra a fraqueza incipiente do Kid, o infinito vasto do deserto contra a finitude diminuta das caravanas humanas.
Na passagem em que o Juiz segura o bebê antes de esmagá-lo, essa lógica atinge um ápice simbólico. Ali, o leitor não testemunha apenas um ato de crueldade; encontra-se frente à destruição do futuro pela força do presente. O gesto terrível do Juiz abala qualquer suposição sobre hierarquias morais, reafirmando o caos como a lei maior.
Código proairético — O código proairético sugere uma sequência de cenas que envolvem o leitor em uma atmosfera de suspense e desejo de resolução. Por exemplo, uma cena em que uma personagem limpa uma arma não indica apenas apego à higiene, mas prenuncia uma ação iminente decorrente do uso dessa arma.
No romance, a narrativa progride como um cortejo fúnebre: cada passo, um evento, uma ação desencadeada com precisão cirúrgica. A jornada do Kid começa com sua entrada nos territórios da violência ainda pueril e culmina na adesão quase inconsciente a um pacto com o inevitável — a carnificina.
São nesses gestos encadeados que McCarthy acelera ou desacelera o ritmo. A primeira chacina é relatada como um desastre quase silencioso, enquanto outros momentos, como a aniquilação das tribos indígenas, são descritos em detalhes cinematográficos. Cada sequência de ação não é apenas uma funcionalidade narrativa; é uma exploração do inexorável, que empurra o leitor para uma compreensão visceral da violência.
Código referencial — O romance é profundamente contextualizado nas raízes da história norte-americana, ainda que McCarthy evite toda didática. Barthes, em “O Prazer do Texto”, obra-prima de 1973, aponta que o texto é sempre uma rede de referências culturais. Assim é o romance de McCarthy, ancorado na era da expansão para o oeste, mas ecoando mitos universais de colonização, destruição e dominação.
A brutalidade da gangue de Glanton carrega uma ironia histórica: homens que, sob o pretexto de civilização, praticam atos de barbárie que rivalizam com aqueles que alegam exterminar. Esses atos conectam o romance às narrativas de poder europeias e à fundação dos impérios modernos. Ao silenciar esses contextos nos diálogos, McCarthy obriga o leitor a explorar, por conta própria, as raízes e implicações mais profundas das ações.
A análise dos códigos barthesianos desvela em “Meridiano de Sangue” um palimpsesto de interpretações possíveis. A violência, embora física e explícita, é também uma camada em uma narrativa onde os símbolos e as referências culturais apontam para dilemas metafísicos. Num registro que articula potência de ação com sutileza de sentido, McCarthy entrega uma obra que continua a desafiar leitores e intérpretes ao infinito.
O mundo desolado deste romance, com sua violência ensurdecedora e paisagens ermas, não é apenas um pano de fundo indiferente às ações humanas; é uma instância narrativa articulada com precisão, em que espaço e história se entrelaçam na tessitura do texto. O contexto histórico — o avanço colonialista, a fragmentação das fronteiras, a brutalidade endêmica do século 19 nos Estados Unidos — emerge como substância literária precisamente por meio da manipulação estrutural, mais do que por declarações explícitas. Como afirma Gérard Genette em “Figures 3”, “a narratividade opera mais no silêncio das estruturas do que nos gritos do conteúdo”.
A aplicação das categorias genettianas ilumina as estratégias literárias de McCarthy. A descontinuidade temporal, construída com analepses e prolepses, demonstra não apenas uma ruptura da cronologia, mas a dessacralização do progresso histórico. O Oeste americano, tão frequentemente idealizado como espaço de redenção, aqui se decompõe em memórias truncadas, criando um vórtice de fatalismos. Barthes, em “S/Z”, lembra que a não-linearidade narrativa opera como forma de resistência ao poder hermenêutico simplista, e McCarthy exemplifica essa resistência ao recusar o arco clássico de causa e efeito.
As três categorias nas quais Genette organiza o tempo narrativo — ordem, duração e frequência — são ferramentas que, aplicadas ao texto, expõem a intermitência do histórico no tecido ficcional. No livro, momentos que deveriam cristalizar avanços civilizatórios são eclipsados por cenas de destruição incessante. O tempo dilatado das descrições contrasta com elipses repentinas que saltam carnificinas ou peregrinações inteiras, apontando para a arbitrariedade do real histórico enquanto construção discursiva.
O espaço geográfico opera na narrativa como um código simbólico, no sentido que Barthes atribui ao termo. Não se trata apenas de um deserto literal, mas de um “espaço de abandono” que reflete um estado social e político fragmentado. Os movimentos dos personagens, oscilando entre limites geopolíticos e desfiladeiros oníricos, criam uma cartografia mental que excede a geografia. “A topografia do romance é simultaneamente a de uma cultura e a de seus sintomas”, observa Barthes.
Roland Barthes, ao propor o conceito do código referencial, estabelece que a literatura frequentemente convoca sistemas extratextuais de sentido para amplificar a percepção narrativa. No romance em questão, isso é evidente na articulação entre a paisagem física do Oeste americano e os vestígios da expansão territorial dos EUA. McCarthy invoca eventos históricos, como os massacres de grupos indígenas e a febre do ouro, mas subverte sua apropriação ao desmitificar tanto heróis quanto vítimas.
Essa interação entre narrativa e história revela-se também na organização social do romance, estruturada em torno do conflito incessante. Barthes menciona que o realismo literário frequentemente camufla contradições estruturais, mas McCarthy opera em sentido contrário: cada diálogo truncado e cada batalha feroz iluminam o atrito irreconciliável entre sistemas sociais divergentes, do expansionismo econômico à resistência indígena.
Quando analisamos o romance sob a ótica do código proairético, como estabelecido por Barthes, percebemos que o enredo progride não apenas pelas ações dos personagens, mas por uma sucessão de catástrofes que sugere uma narrativa antiestrutural. O ciclo interminável de violência não se resolve em soluções morais ou reviravoltas dramáticas; antes, sustenta um movimento perpétuo que captura o leitor no próprio abismo que o romance deseja explorar.
A teoria estruturalista enfatiza como essas sequências reiterativas refletem um jogo textual que transcende os eventos relatados. Barthes, ao discutir o código hermenêutico, assinala que as perguntas retóricas da narrativa sustentam a curiosidade do leitor. Em McCarthy, as interrogações estão sempre presentes: o que motiva o Juiz Holden? De onde vem sua filosofia de aniquilação total? Tais mistérios não se dissolvem em respostas, mas em novos enigmas, que perpetuam a complexidade do romance.
O Juiz Holden se destaca como uma figura que excede qualquer categorização histórica simples. O narrador heterodiegético, estudado por Genette, posiciona o leitor ao mesmo tempo dentro e fora do olhar do Juiz. Ele se torna uma espécie de “campo focalizado” que filtra, absorve e distorce o mundo. É por meio da interação entre focalização interna e externa que McCarthy constrói a aura mítica dessa figura.
A ausência de uma resolução clara no romance representa uma estratégia narrativa deliberada. Tempo, espaço e voz não convergem em fechamento; ao contrário, dissolvem-se em um vazio que desafia a ideia de totalidade. Como observa Barthes em “O Prazer do Texto”, “a narrativa atinge o prazer máximo quando provoca o deslocamento entre o já conhecido e o irrepresentável”. McCarthy, seguindo essa linha, escreve como quem simultaneamente revela e encobre o real.
“Meridiano de Sangue” confirma a validade das categorias estruturalistas como instrumentos indispensáveis para apreender não apenas a construção do romance, mas sua ambição de capturar o caos da experiência humana. Genette e Barthes revelam como McCarthy transcende seu tempo, criando uma obra que ressoa entre história, geografia e literatura, desafiando o leitor a encontrar sentidos na vastidão devastadora que engendra.
Síntese didática
A viagem ao coração narrativo do livro revela uma arquitetura complexa, sustentada por categorias que esculpem o tempo, o modo e a voz, assim como os códigos que Roland Barthes vislumbrou nas profundezas do texto literário. A desordem temporal de Gérard Genette, com suas analepses e prolepses, guia-nos pelo caos interno da obra, enquanto as alternâncias de ritmo e perspectiva moldam um tecido narrativo que é sugestivo e, ao mesmo tempo, implacável.
O uso dos códigos hermenêuticos, semânticos e simbólicos por Barthes adiciona outra dimensão: os enigmas narrativos se tornam trampolins para a reflexão; os símbolos do deserto e da violência, signos que ecoam através dos séculos. McCarthy prova que um texto não apenas narra, mas canta suas contradições. Tempo e ação aqui não fluem, mas se derramam, moldando uma estrutura que respira o vazio e o absurdo.
A análise estruturalista lança luz sobre o mecanismo interno que move “Meridiano de Sangue”. Se, como afirma Barthes em “Introdução à Análise Estrutural da Narrativa”, “cada texto é uma galáxia de significantes”, então McCarthy configura constelações que orbitam em torno do caos, da violência e do destino. As camadas de voz, os fluxos de perspectiva, tudo contribui para aprofundar a complexidade ética do romance.
Entender a cronologia tortuosa, a focalização oscilante e as múltiplas camadas narrativas não é um exercício puramente técnico, mas uma entrada para os significados existenciais que a obra propõe. É no balanço delicado entre o primitivismo e o meticuloso que McCarthy instaura sua poética brutal.
A recepção crítica do romance parece refletir sua própria complexidade estrutural. Harold Bloom, em “Como e Por que Ler”, diz que a obra se encaixa no cânone da “literatura do sublime”, onde a violência transcende sua própria brutalidade e transforma-se em metáfora ontológica. A estrutura narrativa reforça esses temas, tornando a leitura um desafio físico e filosófico.
O romance não apenas retrata uma América devastada, mas desmascara os mitos fundacionais da história humana. Tempo e espaço se tornam alegorias de fragilidade, e a narrativa — com suas escolhas estilísticas rigorosas — funciona como um espelho das incertezas e das verdades ferinas que habitam a experiência humana.
Se o que Barthes afirma em “S/Z” — que cada leitor reescreve o texto ao lê-lo — é verdade, “Meridiano de Sangue” fornece um espaço interpretativo quase infinito. Uma análise estruturalista comparada com outras obras contemporâneas poderia evidenciar tendências estilísticas e filosóficas na literatura do final do século 20. Textos como “Os Despossuídos”, de Ursula K. Le Guin, ou “O Estrangeiro”, de Albert Camus, poderiam beneficiar-se de abordagens semelhantes, considerando as rupturas temporais e o uso de símbolos culturais.
Romances históricos como “Os Pioneiros”, de Willa Cather, lançam olhares sobre espaços geográficos e morais similares, mas a partir de ângulos de reconstrução cultural e menos densamente violentos. Aplicar as categorias genettianas e barthesianas permite vislumbrar as nuances estilísticas que diferenciam autores sob uma mesma temática.
Ainda que indispensável para revelar a engenharia narrativa de um romance, a análise estruturalista carrega consigo limitações. A crítica mais contundente, articulada por Jacques Derrida em “A Escritura e a Diferença”, aponta que a busca por estruturas universais pode obliterar os detalhes imprevisíveis do texto, suas fraturas. Como então, em McCarthy, aproximar-se da violência crua sem perder de vista as complexidades éticas e históricas de sua construção?
A desconstrução pode complementar a leitura de “Meridiano de Sangue”, considerando que o texto articula uma realidade brutal, mas nunca uniforme. Barthes também se rende à natureza subversiva do texto em “O Grau Zero da Escrita”: algumas obras rompem com qualquer unidade interpretativa. Métodos interdisciplinares — incluindo psicanálise e estudos pós-coloniais, com os quais não me identifico ou cujos instrumentos não manejo — poderiam elucidar camadas ainda inexploradas, como o apagamento das vozes indígenas no romance.
O estudo de McCarthy através de categorias de tempo, modo, voz e códigos narrativos não apenas expõe a tessitura do texto, mas reverbera sobre a própria natureza do romance como forma artística. Se a literatura reflete e distorce a realidade, “Meridiano de Sangue” é o espelho mais feroz e mais verídico: seus fragmentos capturam não a suavidade do humano, mas suas fissuras e abismos.
Essa abordagem abre novos caminhos críticos, instigando outros olhares e reinserindo o romance em debates literários mais amplos, dialogando com os projetos de renovação da teoria narrativa que transcendem o século 20. Como leitores, o desafio posto por McCarthy — com seus símbolos e enigmas — nos convida não apenas a compreender o texto, mas a enfrentá-lo, com a coragem que sua própria narrativa demanda. Um grande livro pede leitores dedicados, munidos não da falsa modéstia cordial, mas da modéstia curiosa do estudo, leitura, releitura e análise.