Mulheres têm se sentido no dever de superar qualquer expectativa mais óbvia que possam nutrir a seu respeito, para o bem e para o mal, fazendo com que o péssimo comportamento masculino seja muitas vezes um modelo que conseguem tornar quase pueril. “Olho por Olho” vai da psicanálise a Shakespeare, passando ainda pelas tragédias da Grécia Antiga e pelas telenovelas brasileiras — que desde sempre conseguiram equacionar muitas variáveis e não raro entregaram obras de gênio, goste-se ou não delas, tenha-se o preconceito que se tiver.
Produções que falam de destino, do livre arbítrio, da incompreensão do homem diante dos (des)caminhos que a existência toma frente a circunstâncias cuja natureza era de todo impossível são, disparadas, as que tocam o coração do público e movimentam a audiência, seja em que veículo for. A história de uma mulher que falava com a filha ao telefone e escuta seus últimos gritos estende-se sobre quão traiçoeiro pode ser o fado, que à luz do pensamento freudiano é a junção de duas pulsões, a de vida e a de morte e, claro, o que cada um faz com elas. A adaptação de John Schlesinger (1926-2003) para o romance homônimo de Erika Holzer (1935-2019), publicado em 1993, encadeia dilemas morais de uma mãe desesperada, lutando por justiça com as armas de que dispõe, até o ponto em que não pode fugir da dureza da realidade.
O sentimento de fracasso é um dos venenos mais mortíferos para o gênero humano. Entretanto, ao cabo de tantas desilusões, existem aqueles que simplesmente deixam de se importar, como se não fosse possível qualquer margem de avanço, como se a vida congelasse, não por um momento de desdita mais severa, mas para sempre, até que, como sempre sói acontecer, o destino arme uma de suas grandes e maravilhosas falsetas. Esse não é o caso de Karen McCann. Após o estupro e assassinato brutal de sua filha, Julie, cujo horror ela quase chega a presenciar, Karen parece resignar-se, mas quando Robert Doob, o criminoso, vai a julgamento e se livra da cadeia, ela crê que seja a hora de mexer seus pauzinhos. Ela gruda em Denillo, um tarimbado detetive do Departamento de Polícia de Los Angeles, e como ainda assim não consegue nada, resolve seguir Doob. O texto de Rick Jaffa e Amanda Silver frisa o andamento episódico da trama, com Sally Field e Joe Mantegna se revezando em cenas que misturam violência e tensão, até que Schlesinger passa a dissecar o maneira como o bandido opera.
Doob não se deixa intimidar com as investidas de Karen, cruzando toda a cidade num furgão como entregador de um mercadinho quando não está procurando encrenca, molestando cachorros ou à espreita de garotinhas em balanços. O próximo ataque poderia ser contra Megan, a caçula de oito anos, também filha de Mack, o marido benevolente e ingênuo interpretado por Ed Harris, que só escapa porque seu potencial agressor apenas queria dar um aviso.
A mesma sorte não tem uma bela morena latina de Skid Row, e Kiefer Sutherland torna-se muito mais que um antagonista no que tempo que resta. Doob é a típica ameaça pública de que milícias fascistoides adoram se ocupar e, profeticamente, o diretor menciona um certa associação de pais e familiares de vítimas de crimes bárbaros que esconde um grupo que promove o treinamento dessas pessoas para a execução de seus algozes. O problema é que Angel Kosinsky, a agente infiltrada do FBI vivida por Charlayne Woodard, frequenta as reuniões e está a par de tudo.
Seguir com o plano, saciar sua fome de vingança e arriscar-se a receber a pena que Doob deveria ter cumprido é a encruzilhada schopenhaueriana que Karen precisaria vencer, não fosse a saída deus ex machina que Schlesinger tira da cartola a alguns minutos do encerramento, desapontadora, mas não o bastante para invalidar o entretenimento até ali. O divertido mesmo em “Olho por Olho” é compreendê-lo como uma experiência antropológica, atentando para o quanto o cinema mudou nesses últimos 28 anos. A sociedade, menos.
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