Ninguém minimamente honesto pode dizer que jamais tenha sentido o que Mildred Hayes, a enérgica protagonista de “Três Anúncios para um Crime”, sente quanto às autoridades policiais e ao ordenamento jurídico do lugar onde vive. Feita esta ponderação, este grande filme de Martin McDonagh mexe com emoções as mais primitivas, um talento que o diretor ostenta sem pudor. Um ciclo de injustiças vira o atalho para uma cornucópia de tragédias na condução sensível de um artista perspicaz, atento ao que o gênero humano tem de selvagem, reprimindo a custo a fera que habita em sua alma.
Poucos cineastas subvertem a lógica das conclusões fáceis e instantâneas como McDonagh, e aqui, a exemplo do que já fizera em “Os Banshees de Inisherin” (2022) ou mesmo “In Bruges” (2008), verdadeiros tratados acerca da solidão e da dor fundamental do existir. O diretor-roteirista inclui no leito da trama um delito que instiga uma comunidade do centro-oeste americano, mas que, permanecendo sem desfecho, açula a raiva de uma mulher corajosa, disposta a sacudir o tal sistema em busca da verdade.
Divorciada há pouco, Mildred ainda sofre com o estupro e assassinato brutal de sua filha, Angela, e esse sofrimento vai começando a referver num caldeirão de fúria, graças à inação da polícia de Ebbing, cidade fictícia do Missouri. Três outdoors numa estrada de baixo movimento parece-lhe a luz no fim do túnel que ela precisava tanto vislumbrar; ela junta suas economias e aluga os espaços, com questionamentos ao xerife Willoughby a respeito da demora e da impunidade, uma vez que nenhum suspeito chegou a ir para a cadeia e o inquérito está prestes a ser arquivado.
O arrojo de Mildred chama a atenção da imprensa, e então o filme decola, a partir da reação de Willoughby e, principalmente, Dixon, seu assistente imediato. Esse núcleo restrito, capitaneado por Frances McDormand, seguida de perto por Sam Rockwell e Woody Harrelson, nessa ordem, domina o enredo até o derradeiro lance, ainda que por meio do elenco de apoio certeiro, com Peter Dinklage, Caleb Landry Jones, Abbie Cornish, Lucas Hedges, Clarke Peters e John Hawkes, McDonagh desenvolva subtramas agridoces, como o interesse de James, o personagem de Dinklage, por Mildred. Etapas de um plano sofisticado para desviar a atenção do público do que importa.
Mildred e Dixon se parecem mais do que gostariam de reconhecer, e o diretor sublinha os demônios de uma e outro. Um evento funesto envolvendo Willoughby liberta os de Dixon, enquanto a personagem central, como Antígona, a anti-heroína de Sófocles (497 a.C. – 405 a.C.) na peça homônima de 442 a.C, renova suas forças no que toca a dar um fim digno à história de Angela. McDormand e Rockwell, os vencedores dos Oscars de Melhor Atriz e Ator Coadjuvante de 2018, respectivamente, catalisam emoções dicotômicas, com Dixon cumprindo um imenso arco até apontar para um destino tenebroso.
Mildred, por seu turno, inspira piedade e ternura ao fazer questão de falar tudo o que qualquer um que enfrenta vicissitudes graves como a sua tem vontade, a exemplo da cena em que dispensa os conselhos do cura de Ebbing. McDormand dá a impressão de arrastar um pesado grilhão, mantendo permanentemente curvada, mas em guarda, pronta para atacar. McDonagh coroa o espetáculo de sua atriz principal com as artesanias técnicas na trilha sonora, a cargo de Carter Burwell, e a fotografia de Ben Davis. Tudo para ratificar que a velha máxima de Hobbes continua valendo.
★★★★★★★★★★