Dizer que um filme sobre as descobertas da infância é encantador pode soar ou redundante ou apressado, uma vez que o universo da criança se caracteriza pela magia, pelo sonho, mas também pelo confronto com a vida como ela é. Se, todavia, este é o critério, “Wicked” é mesmo um caldeirão de feitiços, um mais poderoso que o outro, e Jon M. Chu, um bruxo dos melhores. Conhecido por unir em seus trabalhos dança e música de um jeito orgânico, sem que a história jamais saia do foco, a exemplo do que se assiste em “Podres de Ricos” (2018) e “Em um Bairro de Nova York” (2021), em Wicked o diretor mira o fantástico e acerta a vida como ela é no que tem mais rasteiro, tudo disfarçado por personagens com um pé em cada mundo.
Nesta prequela de “O Mágico de Oz” (1900), de L. Frank Baum (1856-1919), uma das pedras fundamentais do realismo fantástico americano, que por seu turno pariu o clássico de Victor Fleming (1889-1949), um dos filmes mais emblemáticos da Era de Ouro de Hollywood, em 1939, os personagens são todos adultos, mas é impossível não ver ali Dorothy Gale, a mocinha que engoliu Judy Garland (1922-1969). Baseado no romance homônimo de Gregory Maguire, de 1995, “Wicked” é uma prova de que bons enredos sobrepujam o correr dos anos, adaptando-se ao que plateias as mais heterogêneas querem deles, mácula que Chu usa a seu favor.
O roteiro de Winnie Holzman e Dana Fox vence o desafio de superar as muitas ideias pré-concebidas que “O Mágico de Oz” impõe, até sem querer, e fixa-se em sua própria interpretação da trama. Sem pressa, temas como autoritarismo, discriminação racial, o poder ambíguo do carisma vêm à superfície, rompendo a cortina de fumaça e atravessando os espelhos de que o Mágico se vale para governar A Terra de Munchkin. Logo resta claro que também ele é uma vítima do tal sistema, representado por Elphaba, a Bruxa Má do Oeste, que começa como uma garota excluída por ter a pele verde, mas não por acaso — numa das sequências mais perturbadoras dos 160 minutos, o Mágico, de um inspirado Jeff Goldblum, persegue uma mulher negra, e talvez essa seja a justificativa mais plausível para a transformação de Elphaba.
Por outro lado, Glinda, ou melhor, Galinda, volta à Terra de Munchkin para comunicar a morte de Elphaba, e Chu aproveita o gancho para encaixar um flashback no qual explica a amizade e o rompimento entre Galinda, alguém que sempre teve tudo, e Elphaba. “Popular”, uma das canções-chiclete de “Wicked”, é outra das medidas diversionistas com que o diretor confunde o público quanto ao verdadeiro caráter da mocinha, e trata de oferecer o merecido destaque a Elphaba.
Poucas vezes em produções recentes viu-se tamanha química como a sustentada por Cynthia Erivo e Ariana Grande, impecáveis em realçar os lados sombrio e rosicler de Galinda e Elphaba, ajudadas pelos figurinos de Paul Tazewell, pelo design de produção de Nathan Crowley e, por óbvio, pela fotografia de Alice Brooks. O minucioso trabalho de Jon M. Chu faz muita gente querer tornar a um tempo em que nunca esteve, no qual, ao fim de uma estrada de tijolinhos amarelos, estava a felicidade.
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