A solidão é uma força avassaladoramente destrutiva em “Notas sobre um Escândalo”, a adaptação impecável de Richard Eyre para o romance homônimo da britânica Zoë Heller, publicado em 2003. Eyre, ex-diretor do National Theater em Londres, e o roteirista Patrick Marber, autor da peça “Closer” (1997), fenômeno da cultura pop contemporânea pelas mãos de Mike Nichols (1931-2014), em 2004, elaboram uma peça de refinada artesania visual que consegue também ser uma reflexão aguda acerca da maldade e da insensatez nas mais diferentes formas. A história de uma professora do ensino médio numa escola do subúrbio londrino que se apaixona por um aluno adolescente, e passa a ser perseguida por uma colega já entrada em anos, antes com prudência, depois movida por rancor e fúria, volta a um episódio da vida como ela é — embora ninguém jamais o cite.
Em 18 de junho de 1996, Mary Kay Letourneau (1962-2020), uma professora do ensino fundamental lotada em Washington, foi encontrada por policiais com Vili Fualaau, um aluno de apenas doze anos, dentro do carro num lugar ermo. O gosto por aventuras extraconjugais pedófilas rendeu a Letourneau oito anos de cadeia — ela conseguiu reverter a pena para a prestação de trabalhos comunitários em 4 de agosto de 2004 —, uma filha, um casamento de década e meia e provocou um dos maiores abalos na sociedade americana, com reflexos no ordenamento jurídico e nos estatutos de unidades educacionais de todo o mundo, sem que jamais tenha se arrependido de nada.
Em “Notas sobre um Escândalo”, Letourneau, a inspiração para a anti-heroína de Julianne Moore no excelente “Segredos de um Escândalo” (2023), de Todd Haynes, vira Bathsheba Hart, uma loira para quatrocentos talheres, refrescantemente descabelada, que parece caída do azul ao chegar a seu novo posto. Aos poucos, entretanto, Sheba poderá dispor de um ombro amigo para os momentos em que o fardo tornar-se pesado demais, não sem pegar um preço injusto.
Barbara Covett, uma septuagenária linha dura que inspira o respeito dos “futuros mecânicos e donas de casa sem horizontes”, como ela se refere a seus estudantes, é um molusco dentro de uma concha. A vida de Barbara para além dos muros da escola resume-se a assistir a filmes de William Wyler (1902-1981), ler Gertrude Stein (1874-1946) e Alice Munro (1931-2024) e sonhar com um caso de amor com alguém que tenha os mesmos gostos e as mesmas ambições que ela, e sem pressa, Eyre põe na boca da personagem uma ou declaração que aponta sua preferência por mulheres mais jovens e emocionalmente instáveis, assim como Sheba, ainda que a novata pareça a princípio mais um arquétipo de tudo quanto ela abomina.
É fascinante acompanhar a aproximação das duas, levada com muita organicidade pelo diretor, até o almoço na casa de Sheba, para o qual Barbara é convidada. Antes mesmo de entrar, o choque diante de Richard, o marido muito mais velho da colega, denuncia que aquela será uma tarde no mínimo pitoresca, com as observações entre preconceituosas e divertidas da solteirona acerca dos hábitos domésticos de Sheba e sua família pequeno-burguesa e meio jeca, com danças coletivas após a refeição enquanto a anfitriã não tem de se desdobrar entre Ben, o filho de doze anos com síndrome de Down, e Polly, a filha encrencada com o namoradinho. Quando chega em casa, Barbara registra tudo num diário, decorando as páginas com estrelas douradas de papel.
A harmonia de Barbara e dos Hart, nessa ordem, é estilhaçada por Steven Connolly, o garoto com quem Sheba tem encontros sexuais furtivos na sala de artes. Barbara, claro, flagra esse momento e o que poderia ser uma ruptura traumática e uma denúncia até constrangida e pesarosa acaba como um trunfo para a megera. Cate Blanchett e Andrew Simpson ancoram cenas cujo erotismo flutua entre o sublime e o banal, sem nunca resvalar na vulgaridade, ao passo que Judi Dench vai escalando com suavidade cada degrau da loucura de sua personagem, no fundo sempre à cata de um motivo para uma repentina virada de mesa. Quando morre Portia, a gatinha de Barbara, e Sheba se nega a acompanhá-la à clínica veterinária para resgatar o cadáver do animal porque tem de comparecer à peça de fim de ano na escola de Ben, o tal escândalo eclode.
Malgrado Simpson e Bill Nighy, na pele de Richard, tenham a oportunidade de mostrar um bom trabalho, “Notas sobre um Escândalo” é um filme de mulheres, de mulheres vis, cada qual a seu modo. Barbara Covett é sem dúvida uma criatura desprezível em sua mesquinharia e seu poder de matar qualquer vestígio de beleza no quer que toque, mas Sheba e sua incapacidade de controlar seus instintos não fica atrás. Contudo, talvez não haja sobre a face da Terra quem não tenha se comportado ou como uma ou como a outra, especialmente se numa quadra de mais vulnerabilidade, cavando sua própria sepultura quando supunha estar fazendo um bem à humanidade ou prejudicando duas famílias quando imaginava estar apenas no gozo de seus direitos individuais. “Gente insegura é perigosa”, diz a personagem de Moore a quem ousa perturbar o sossego de sua vidinha banal. Mas pode ser a única saída num mundo de apetites tão edazes e valores tão pouco sólidos.
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