Joe Gavilan e K.C. Calden conhecem todos os malandros ingênuos, os moradores de rua, os pequenos traficantes, as prostitutas adolescentes, mas também as donas de casa idosas e guardas de trânsito bonachões que se esparramam pelas ruas de Los Angeles, misturados a indivíduos comuns, cuja banalidade afronta o mais simplório dos homens, e passam por matadores de aluguel, assassinos impiedosos que levam seu ofício a sério e não dispõem de tempo nem de vontade para brincadeiras ou outras interações sociais dispensáveis.
Gavilan e Calden, os protagonistas de “Divisão de Homicídios”, encaram seu posto no Departamento de Polícia da Cidade dos Anjos como uma brincadeira que pode acabar bem ou mal, dando a entender que não perderiam muita coisa se recebessem o bilhete azul. Nessa maldisfarçada sátira aos homens da lei e seus idiossincrásicos expedientes, Ron Shelton assume o risco de fixar-se em seus abilolados anti-heróis e deixar a história correr sem muito cálculo, o que poderia resultar num nonsense involuntário sem conserto. O que se tem, todavia, é um besteirol divertido, saboroso, daqueles que Hollywood não faz mais há algum tempo.
À medida que se vive, mais se cristaliza em nós a ideia de que a vida é um curioso desafio, em que vencida cada etapa, impõe-se-nos a seguinte, e mais outra, e outra ainda, até que essas mil situações que mais parecem testes a nossa resistência, se tornem para nós a fonte mesma do que podemos ter de mais genuíno, a capacidade de suportar a incerteza fundamental que cobre tudo e desfaz dos planos mais ordinários com que nos atrevemos a sonhar. Gavilan e Calden passam por uma bateria de provações todos os dias, e só chegam ilesos ao outro lado porque pensam em seus verdadeiros talentos: vender imóveis e incorporar figuras distintas de sua pedestre humanidade.
Gavilan, o veterano detetive interpretado por Harrison Ford, é um corretor imobiliário — categoria profissional endeusada em Los Angeles — que tenta fechar um grande negócio com a venda de uma suntuosa mansão para o dono de uma casa noturna onde quatro rappers foram assassinados. Ele aproveita uma diligência para fechar os detalhes da transação, enquanto participa a contragosto da passagem de “Um Bonde Chamado Desejo” (1947), o espetáculo teatral de Tennessee Williams (1911-1983) levado à tela por Elia Kazan (1909-2003) em 1951.
Como se disse, Gavilan e Calden são o que mais importa aqui, logo ninguém questiona por que o tenente Benne Macko, o superior da Corregedoria que não digere Gavilan, demora tanto a interessar-se pelo que ele e o parceiro andam fazendo — e aqui cabe um comentário quanto à inidoneidade do corregedor, com Bruce Greenwood na dose exata de frieza e explosão. O mesmo se aplica às amizades femininas do tira mais velho, que anda com Ferre Salesclerk, a meretriz encarnada por Lolita Davidovich, mas gosta mesmo é de Ruby, a vidente de Lena Olin. Charmoso como sempre, Ford galvaniza essa imagem do sujeito durão, mas cheio de carisma, ao passo que na pele de K.C. Calden Josh Hartnett dispara tiradas impagáveis, como na sequência do necrotério. O que tornaria supérfluas tantas participações especiais.
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