Extraída do livro “I Heard You Paint Houses” (2004), de Charles Brandt, um investigador dedicado a desvelar o crime organizado nos Estados Unidos, a trama de “O Irlandês” conduz o espectador por um intrincado labirinto de lealdades e traições. No centro dessa narrativa está Francis Joseph Sheeran, conhecido como Frank (1920-2003), uma figura-chave da máfia americana entre as décadas de 1960 e 1970, e seu controverso papel no desaparecimento de Jimmy Hoffa (1913-1982), o lendário líder sindical. Quem mais poderia guiar essa jornada senão Martin Scorsese? Com sua maestria característica, o diretor disseca a ascensão de Sheeran, desde seu encontro com Russell Bufalino (1903-1994) — um dos mais influentes chefes do crime da Pensilvânia — até sua transformação em “pintor de casas”, expressão macabra que alude às marcas de sangue deixadas por suas execuções. É essa mesma expressão que dá título à obra original de Brandt.
A exemplo de “Os Bons Companheiros” (1990) e “Cassino” (1995), Scorsese manipula o tempo narrativo com habilidade singular, alongando ou comprimindo momentos para intensificar a experiência do espectador. Essa fluidez ganha ainda mais força graças à edição primorosa de Thelma Schoonmaker, sua colaboradora desde “Touro Indomável” (1980). Com um roteiro meticuloso assinado por Steven Zaillian, o filme entrelaça imagens e camadas narrativas de forma tão complexa quanto hipnotizante. A fotografia de Rodrigo Prieto, marcada por tons que evocam nostalgia e decadência, completa o time de talentos indicados ao Oscar em 2020. Contudo, em uma decisão que permanece como um exemplo gritante das injustiças da Academia, “O Irlandês” saiu de mãos vazias, apesar de concorrer em categorias como Melhor Filme.
Mais do que um retrato do submundo, “O Irlandês” é uma reflexão melancólica sobre o tempo, a mortalidade e as escolhas que moldam um legado. Scorsese apresenta Sheeran não apenas como o executor frio que a máfia celebrava, mas também como um homem envelhecido e consumido pela culpa. Na abertura e no encerramento, o encontramos em uma cadeira de rodas, isolado em um asilo, confessando seus pecados a um padre — uma tentativa tardia de redenção que pouco alivia a repulsa do público. Entre suas memórias, emergem as lembranças de um modesto motorista de caminhão de carnes que, aos poucos, ascende na hierarquia criminosa ao conquistar a confiança de Bufalino e se aproximar de Hoffa, com quem compartilha uma relação complexa, marcada por lealdade e desconfiança.
Embora o longa explore diversas camadas dessa história, é o trio central de personagens — Sheeran, Bufalino e Hoffa — que encapsula o cerne da narrativa. Robert De Niro, Al Pacino e Joe Pesci, pilares da filmografia de Scorsese, entregam performances que transcendem a tela, com auxílio de técnicas de rejuvenescimento digital e maquiagem meticulosa. Essas escolhas visuais, longe de serem meros artifícios, reforçam a imersão na cronologia fluida do filme, culminando em uma sequência final arrebatadora. Porém, nem mesmo a excelência técnica e artística foi suficiente para conquistar os “velhinhos rabugentos” da Academia. Talvez, como sugere o próprio filme, até mesmo a máfia cinematográfica de Scorsese tenha ultrapassado limites que poucos ousam desafiar.
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