Chocante e inesquecível, “Zona de Interesse” mergulha no absurdo do nazismo durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), apresentando um retrato perturbador de Rudolf Franz Ferdinand Höss (1901-1947). Figura central no regime de Adolf Hitler (1889-1945), Höss foi uma personificação daquilo que a filosofa Hannah Arendt (1906-1975) descreveu como a “banalidade do mal”. Tenente-coronel da SS, ele executava com frieza metódica a gestão de Auschwitz II-Birkenau, morando a poucos metros do campo, indiferente aos horrores da “Solução Final para a Questão Judaica”. Essa proximidade não era apenas geográfica, mas também moral, ilustrando a indiferença extrema diante de uma catástrofe humanitária.
O roteiro de Jonathan Glazer, adaptado do romance homônimo de Martin Amis (1949-2023), publicado em 2014, utiliza recursos visuais e sonoros para explorar essa dicotomia. A narrativa coloca o espectador à beira do insuportável, transformando-o em uma testemunha incômoda da psicopatia familiar dos Höss. Em uma direção cirúrgica, Glazer trabalha com oposições: a aparente normalidade de uma família vivendo confortavelmente enquanto, do outro lado do muro, o Zyklon B extermina vidas em câmaras de gás. As paredes impregnadas com as marcas desesperadas das vítimas são um testemunho mudo do horror que os Höss preferem ignorar.
A ideia de revisitar esse passado desconfortável pode inicialmente parecer um oportunismo desnecessário. Afinal, o Holocausto é um dos eventos mais documentados e discutidos da história moderna. No entanto, “Zona de Interesse” responde às críticas com uma abordagem singular. Desde sua cena inicial, que contrasta a serenidade aparente dos Höss com os ecos da barbárie ao redor, o filme revela sua intenção: desnudar a cumplicidade cotidiana no mal e mostrar como uma sociedade pode ser seduzida por ideologias destrutivas. Os Höss não são monstros em sua própria visão; são apenas uma família buscando conforto, mesmo que esse conforto seja sustentado pelo genocídio.
Um dos aspectos mais marcantes do filme é sua “estética da limpeza”. A fotografia de Lukasz Zal é dominada por uma luz natural que enfatiza a rotina quase banal dos personagens. Em uma cena emblemática, Höss, interpretado com uma frieza impecável por Christian Friedel, está de pé contemplando o horizonte enquanto sua família se diverte ao sol. Ao fundo, uma coluna de fumaça preta se ergue — um lembrete silencioso, mas opressor, da máquina de morte em operação a poucos metros. Sandra Hüller, no papel de Hedwig Hensel, esposa de Höss, também entrega uma atuação excepcional, revelando uma indiferença calculada e quase farsesca. Vestida em tons pastéis, sua presença contrasta de forma grotesca com a realidade sombria ao redor.
Glazer constrói o relacionamento dos dois como uma comédia sombria, quase vaudeville, onde a celebração da vida — em aniversários e festas de Natal — é colocada em oposição direta à morte industrializada ao lado. Essa dicotomia é incômoda e deliberada, forçando o espectador a confrontar a aparente normalidade da maldade extrema. Essa sensação de desconforto é intensificada pelo design de som do filme, que insere os gritos abafados das vítimas como um eco crescente, uma sombra que nunca desaparece completamente.
No desfecho, Glazer leva o espectador ao Memorial e Museu Auschwitz-Birkenau, onde pertences das vítimas — sapatos, malas — repousam em vitrines. É um lembrete visual e emocional da persistência desse horror na memória coletiva. A transição final, da ficção para a realidade, é poderosa. O filme não apenas retrata o Holocausto; ele também alerta para as sementes de crueldade que ainda germinam em nossos dias.
“Zona de Interesse” não oferece respostas fáceis ou redentoras. Em vez disso, apresenta um espelho perturbador para a sociedade contemporânea, lembrando que, embora Auschwitz seja um marco do passado, a indiferença e o fanatismo que o tornaram possível ainda encontram espaço para florescer. Ao final, a reflexão é inevitável: estamos realmente livres dos fantasmas do passado ou apenas aprendemos a conviver com eles?
★★★★★★★★★★