Poucas narrativas no universo das artes dramáticas exibem tamanha complexidade estrutural e emocional quanto “Desejo e Reparação”, o intricado drama de época dirigido por Joe Wright, baseado na obra homônima de Ian McEwan. Publicado em 2001, o romance, considerado um dos textos mais sofisticados da literatura contemporânea, oferece uma trama que se desdobra em camadas, conduzindo o leitor e, posteriormente, o espectador, por um labirinto de escolhas morais, arrependimentos e verdades inquietantes. O roteiro de Christopher Hampton captura essa essência com uma precisão cirúrgica, mantendo a elegância da narrativa enquanto amplifica sua força visual e emocional.
Wright reconstrói a Inglaterra de 1935 com uma atenção minuciosa aos detalhes, recriando um universo onde cada elemento contribui para a atmosfera de tensão crescente. A fotografia de Seamus McGarvey, com sua paleta de luz natural e tons pastéis, amplifica a imersão, enquanto a trilha sonora de Dario Marianelli, pontuada pelo som rítmico de uma máquina de escrever, entrelaça-se ao pulsar da história, transformando-se quase em um personagem próprio. Essa combinação de elementos torna o filme uma obra de metalinguagem, onde cada cena não apenas narra, mas reflete sobre os próprios mecanismos da narrativa.
No cerne do primeiro ato está Briony Tallis, vivida com uma maturidade impressionante por Saoirse Ronan. A jovem aspirante a escritora observa o mundo ao seu redor com uma curiosidade quase obsessiva, mas sua interpretação equivocada de eventos aparentemente banais desencadeia uma tragédia. A peça escrita por Briony, “As Provações de Arabella”, funciona como um microcosmo de sua personalidade — controladora e criativa —, enquanto o caos doméstico se instala na mansão dos Tallis, que recebe convidados para um jantar. Entre eles está Lola Quincey (Juno Temple), cuja presença sutilmente desestabilizadora desempenhará um papel crucial nos acontecimentos posteriores.
A interação entre Briony e sua irmã mais velha, Cecilia (Keira Knightley), revela camadas de tensão familiar e dinâmica de poder. Robbie Turner (James McAvoy), o jardineiro com ambições intelectuais e uma ligação emocional com Cecilia, torna-se a figura central de um mal-entendido devastador. A cena na beira da fonte, onde Cecilia e Robbie compartilham um momento de intimidade ambíguo, é vista por Briony através da lente de sua imaginação juvenil, levando-a a conclusões erradas que terão consequências irreparáveis.
A partir dessa virada, o filme mergulha em uma análise implacável das ramificações de um ato impulsivo. A acusação injusta de Briony contra Robbie — em parte fruto de sua própria confusão emocional e em parte de uma necessidade de exercer controle sobre os eventos — destrói vidas e cria uma fratura que atravessa décadas. Wright explora a dinâmica entre culpa e redenção com uma sensibilidade que evita julgamentos fáceis, permitindo que o público testemunhe o peso das consequências através dos olhos de cada personagem.
Quatro anos depois, no cenário brutal da Segunda Guerra Mundial, o filme apresenta um contraste visceral com a elegância claustrofóbica do primeiro ato. A sequência do plano-sequência na praia de Dunquerque é uma das mais impressionantes do cinema moderno, capturando a escala do conflito e a fragilidade da condição humana em uma única tomada. Robbie, agora um soldado desgastado pela guerra e pela injustiça, carrega o peso de suas esperanças destruídas, enquanto Cecilia, trabalhando como enfermeira, tenta encontrar significado em meio ao caos.
O ato final traz a revelação devastadora de Briony, agora uma escritora idosa interpretada por Vanessa Redgrave. Em uma entrevista melancólica, ela admite que a reconciliação entre Cecilia e Robbie, mostrada anteriormente, nunca aconteceu. O romance é sua tentativa de dar aos dois amantes o final feliz que a realidade lhes negou. Esse é o golpe de mestre de McEwan e Wright: transformar a história em uma reflexão sobre o poder e as limitações da ficção. Briony busca redenção através da escrita, mas o peso de suas ações permanece inescapável, deixando o espectador dividido entre empatia e condenação.
“Desejo e Reparação” é uma obra-prima que transcende o gênero de drama de época. Mais do que uma história de amor ou culpa, é uma meditação sobre como narramos nossas vidas, os erros que tentamos corrigir e as verdades que preferimos reimaginar. Wright, apoiado por um elenco extraordinário e uma equipe técnica impecável, entrega um filme que não apenas emociona, mas também desafia o espectador a confrontar suas próprias percepções e julgamentos. É uma experiência cinematográfica que reverbera muito além dos créditos finais.
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