O ponto central de “Uma Garota de Muita Sorte” emerge em uma conversa impactante entre Tiffany Fanelli, a protagonista, e Aaron, o documentarista interessado em relatar os acontecimentos de um massacre ocorrido no colégio onde ela estudou. Ele a incentiva a compartilhar sua versão dos fatos, sugerindo que sua história pode inspirar e ajudar outras mulheres. Com uma resposta carregada de ironia e resignação, Tiffany afirma: “Todas elas vão ficar bem”. Essa frase encapsula a narrativa de sobrevivência feminina: uma constante camuflagem da dor para manter a aparência de normalidade em um mundo que frequentemente ignora ou invalida suas feridas.
Tiffany é apresentada como o retrato do sucesso: elegante, segura de si e noiva de um homem que parece perfeito, um ex-atleta universitário com pedigree e uma família influente. Contudo, por trás dessa fachada impecável, esconde-se uma trajetória marcada por traumas que jamais cicatrizaram. O reencontro com o passado se dá quando Aaron a convida a participar de um documentário sobre o tiroteio ocorrido em seu colégio em 1999, um evento que traz à tona memórias ainda mais devastadoras.
O massacre, claramente inspirado na tragédia de Columbine, ceifou a vida de vários colegas de Tiffany, incluindo alguns de seus algozes. No entanto, a verdadeira ferida de sua história não está na violência armada, mas em um episódio de estupro coletivo sofrido em uma festa pouco antes do incidente. Aluna bolsista de um colégio particular que pavimentaria seu caminho para uma universidade da Ivy League, Tiffany optou por silenciar. Denunciar os culpados, jovens brancos, ricos e protegidos, significaria enfrentar julgamentos, destruição de sua reputação e o risco de perder as oportunidades acadêmicas que sua mãe tanto almejava para ela.
Essa escolha, embora trágica, é compreensível dentro de uma realidade cruel, onde a justiça frequentemente falha em proteger mulheres. O caso Mari Ferrer no Brasil exemplifica como as vítimas são frequentemente culpabilizadas e expostas, enquanto os agressores permanecem impunes. Em “Bela Vingança”, de Emerald Fennell, a protagonista Cassandra abdica de seu futuro para vingar as violências sofridas. Tiffany, por outro lado, segue o roteiro imposto pela mãe: ignorar as feridas e perseguir o sucesso. Contudo, ao longo da narrativa, torna-se evidente que esse passado mal resolvido a consome lentamente, corroendo sua estabilidade emocional.
O filme mergulha em um universo onde as mulheres são rotineiramente desacreditadas e reduzidas a caricaturas de interesseiras ou vingativas, enquanto os homens, muitas vezes os próprios agressores, são retratados como vítimas. A narrativa expõe a disparidade de tratamento, especialmente quando os acusados são homens brancos, abastados e defensores dos “bons costumes”. Tiffany, consciente dessa dinâmica, busca no status social um escudo, um meio de evitar a vulnerabilidade que tantas mulheres enfrentam sem qualquer rede de proteção.
Apesar de sua relevância temática, “Uma Garota de Muita Sorte” falha em explorar com profundidade as complexidades emocionais e sociais que aborda. A direção de Mike Barker aposta em um tom exageradamente dramático, flertando com o melodrama, o que dilui parte do impacto. Além disso, certas lacunas narrativas herdadas do livro de Jessica Knoll comprometem a densidade da trama. Ainda assim, o filme cumpre o papel de trazer à tona discussões urgentes, mesmo que superficialmente.
No fim, a trajetória de Tiffany não é apenas um reflexo de sua dor, mas uma denúncia silenciosa de uma sociedade que perpetua a impunidade e questiona constantemente a credibilidade feminina. Ao abordar temas tão relevantes, a obra provoca reflexões importantes, mesmo que não consiga escapar totalmente de seus próprios tropeços estilísticos.
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