Em algumas circunstâncias, o passado é como um monstro que pensamos encerrar numa gaiola de ouro, o nutrindo e acalentando, até que ele, afinal, revela seu vigor. Uma das providências centrais de um sistema de governo autocrático é encarniçar-se das lembranças do cidadão comum e combater qualquer forma de manifestação que ouse afrontar o estabelecido, gênese para transformações essas, sim, em tudo revolucionárias, porque os déspotas sabem que a essência de liberdade que habita cada ser humano é uma força poderosa. Em abril de 1945, três comboios levam 2.500 cativos judeus do campo de concentração de Bergen-Belsen enquanto as tropas aliadas avançam a oeste.
Esses “judeus de troca” tornaram-se o único trunfo de Hitler pouco antes de sua morte e na iminência mesma do fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), e podiam ser substituídos por prisioneiros alemães ou até por dinheiro, mas um milagre, como explica Saskia Diesing em “Três Mulheres – Uma Esperança”, acontece. Diesing junta um trio de personagens fictícias num enredo real, de onde brotam situações entre absurdas, tétricas e às vezes algo divertidas, todas banhadas pela luz difusa do sonho. E sonhos são valiosos em dias extremos.
Um dos trens estanca em algum lugar entre Magdeburgo e a capital, Berlim, e os passageiros saltam. Simone exerce uma liderança natural sobre os outros, e depois de limpar o ferimento do marido, Isaac, interpretado por Bram Suijker, segue com aquela gente para uma aldeia às margens do rio Elba. Os dois se apropriam da casa de Winnie, e os movimentos de todos são observados de perto por Vera, a chefe do Exército Vermelho de Stalin. O roteiro da diretora realça a debacle do Führer dizendo textualmente que Koba também não era a solução para os justos anseios dos maltrapilhos novos moradores da vila, ao passo que não deixa de se fixar em seu cotidiano modesto, no qual sobra espaço para empreitadas suicidas quanto à tentar seguir para a Holanda, terra natal de Simone e Isaac — de bicicleta.
Numa das sequências mais líricas da trama, os dois e outro casal de amigos saem pela floresta até se depararem com o posto de vigilância onde Vera dá expediente. Algum tempo depois, ela atravessa a fronteira com Simone e Winnie ocultas entre artilharia pesada, embora o horizonte da liberdade ainda tivesse de esperar e o desejo de refeições com linguiça de frango fosse uma quimera. Hanna van Vliet, Anna Bachmann e Eugénie Anselin vão se revezando na condução dessa história sobre guerreiras anônimas que transformam o mundo em silêncio, movidas por uma chama que não apaga nem na tempestade mais insistente.
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