Obra-prima de Walter Salles com a única brasileira premiada como Melhor Atriz no Globo de Ouro, Fernanda Torres, na Netflix Divulgação / Animatógrafo Cinema e Filmes

Obra-prima de Walter Salles com a única brasileira premiada como Melhor Atriz no Globo de Ouro, Fernanda Torres, na Netflix

Walter Salles figura hoje como um dos cineastas mais respeitados do cenário internacional, mas em 1995, com o lançamento de “Terra Estrangeira”, ele ainda explorava os primeiros horizontes de sua carreira. Este segundo longa-metragem, dirigido em parceria com Daniela Thomas, destacou-se não apenas por consolidar seu estilo, mas também por capturar, com precisão quase visceral, a atmosfera de um Brasil mergulhado em incertezas e desilusões.

A trama se desenrola em meio ao turbulento contexto político e econômico da década de 1990. Depois de mais de vinte anos de ditadura militar, o Brasil buscava reerguer-se, mas enfrentava os impactos de medidas severas impostas pelo governo Collor. Entre elas, o confisco de poupanças marcou profundamente a vida dos cidadãos, minando a esperança em um futuro mais estável. No campo cultural, o fechamento da Embrafilmes, que até então sustentava boa parte da produção cinematográfica nacional, deixou uma lacuna desafiadora para os realizadores da época.

Nesse cenário desolador, “Terra Estrangeira” emergiu como uma expressão de resistência e criatividade. Sem acesso aos recursos públicos, Salles e Thomas recorreram ao financiamento privado para dar vida ao projeto. O resultado é uma obra em preto e branco que alia estética minimalista a um simbolismo poderoso, retratando a aridez emocional e o desamparo de seus personagens.

No centro da narrativa está Paco (Fernando Alves Pinto), um jovem de São Paulo que vive com sua mãe, Manuela (Laura Cardoso). Sonhando em retornar à Espanha, sua terra natal, Manuela economiza por anos, mas seus planos são brutalmente frustrados pelo confisco das poupanças. O golpe financeiro tem consequências devastadoras: incapaz de lidar com a decepção, ela sucumbe, deixando Paco em um estado de profunda desorientação. 

Em um ato de desespero, Paco aceita transportar pedras preciosas escondidas em um violino até Portugal, onde cruza caminhos com Alex (Fernanda Torres), uma mulher marcada por tragédias pessoais e pelo vazio deixado pela morte de Miguel (Alexandre Borges), um músico viciado em drogas. Unidos pelo desespero e pela necessidade de escapar, Paco e Alex embarcam em uma jornada permeada por perigo, violência e a busca de algum sentido em um mundo desmoronando ao seu redor.

Mais do que uma história de fuga, o filme ecoa o sentimento de exílio vivenciado por muitos brasileiros na época, que, diante da falta de perspectivas, buscaram recomeçar fora do país. A escolha de filmar em preto e branco vai além de uma questão estética: a ausência de cores reforça o tom melancólico e a desesperança que atravessam a narrativa, criando uma linguagem visual profundamente conectada às emoções dos protagonistas. Daniela Thomas trouxe ao projeto uma abordagem mais espontânea, permitindo que cenas improvisadas conferissem maior autenticidade e dinamismo à obra.

A inspiração para o roteiro, desenvolvido por Walter Salles em colaboração com Millôr Fernandes e Marcos Bernstein, surgiu de uma imagem vista em um livro: um casal abraçado diante de um navio atracado, simbolizando despedida e distância. Esse vislumbre serve como metáfora central do filme, encapsulando as temáticas de perda, ruptura e busca por pertencimento. Entre as cenas memoráveis está a interpretação de Fernanda Torres cantando “Vapor Barato”, cuja letra ressoa a exaustão e o anseio por liberdade dos personagens. “Sim, eu estou tão cansado, mas não para dizer que eu estou indo embora…”: os versos encapsulam o dualismo entre o desejo de fuga e a melancolia que os mantém ancorados em suas dores.

Embora enraizado em uma época específica, “Terra Estrangeira” transcende as barreiras temporais e geográficas. Sua narrativa universal e sua carga emocional permanecem relevantes, reafirmando o poder do cinema como meio de reflexão e resistência. A obra não apenas consolidou Walter Salles como uma força criativa no cenário cinematográfico, mas também permanece como um marco na história do cinema brasileiro, um lembrete contundente de que, mesmo em tempos de adversidade, a arte encontra maneiras de florescer.

Filme: Terra Estrangeira
Diretor: Walter Salles
Ano: 1995
Gênero: Crime/Drama/Policial
Avaliaçao: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★
Fer Kalaoun

Fer Kalaoun é editora na Revista Bula e repórter especializada em jornalismo cultural, audiovisual e político desde 2014. Estudante de História no Instituto Federal de Goiás (IFG), traz uma perspectiva crítica e contextualizada aos seus textos. Já passou por grandes veículos de comunicação de Goiás, incluindo Rádio CBN, Jornal O Popular, Jornal Opção e Rádio Sagres, onde apresentou o quadro Cinemateca Sagres.