Inteligente e intimista: drama na Netflix que nem parece filme, parece a vida, na Netflix Divulgação / Animal Pictures

Inteligente e intimista: drama na Netflix que nem parece filme, parece a vida, na Netflix

A morte, sempre inesperada, surge como catalisadora de ajustes tardios. É esse o contexto em “As Três Filhas”, em que um pai à beira do fim reúne, involuntariamente, suas três filhas em um apartamento. O que poderia ser um luto coletivo se revela um embate entre décadas de mágoas acumuladas, gestos impulsivos e distâncias marcadas pelo orgulho. Inspirado pela peça homônima de Anton Tchekhov, Azazel Jacobs transporta para o presente os dilemas atemporais do autor russo, equilibrando fidelidade temática e uma leitura contemporânea que desafia o espectador a refletir sobre os padrões emocionais que atravessam gerações. 

Jacobs constrói a narrativa com sutileza, capturando as nuances de uma convivência carregada de atritos e silêncios incômodos. Na abertura, Katie, interpretada com precisão por Carrie Coon, assume uma postura altiva diante de suas irmãs, Christina (Elizabeth Olsen) e Rachel (Natasha Lyonne). A tensão inicial é pontuada por diálogos que tangenciam o passado, enquanto, no cômodo ao lado, o pai agoniza, prestes a morrer. Essa iminência da morte não é apenas um pano de fundo; é a força gravitacional que arrasta cada personagem para um confronto consigo mesmo e com os outros.

Katie e Christina, ambas mães, encontram-se em estágios distintos da maternidade: a primeira enfrentando os desafios de criar uma adolescente; a segunda ainda na fase encantadora da infância do filho. A figura paterna, ausente e controversa, ecoa nos conflitos de ambas, especialmente nos ressentimentos que carregam. Rachel, por sua vez, emerge como a mais distante desse ideal familiar. Sem filhos, viciada em maconha e sustentando-se por apostas online, ela encarna a ovelha negra da família. Contudo, é justamente essa marginalidade que a torna o eixo emocional da trama. Lyonne oferece uma performance arrebatadora, transformando Rachel em um retrato dolorosamente humano de inadequação e busca por pertencimento.

A direção de Jacobs se destaca ao explorar o microcosmo desse apartamento como uma arena de confrontos internos e externos. Enquanto os diálogos revelam mágoas antigas, os silêncios dizem ainda mais. As performances de Coon, Olsen e Lyonne, somadas à breve, mas marcante, presença de Jose Febus como Vincent, criam uma sinergia que amplifica o impacto emocional do filme. Febus, mesmo quase imóvel, transmite uma vulnerabilidade que encapsula o peso de sua influência na vida das filhas.

O desfecho, que traz a morte de Vincent, é menos uma resolução e mais um ponto de partida para mudanças tardias. A ideia de que “é pena que só nos ajustemos quando confrontados com a finitude” ressoa como uma verdade amarga, mas também esperançosa. Afinal, mesmo diante do inevitável, sempre há espaço para reconsiderar, reparar e, quem sabe, reconciliar.  

Com um roteiro inteligente e atuações memoráveis, “As Três Filhas” não é apenas um filme sobre a morte, mas sobre como ela ilumina as complexidades da vida. Jacobs entrega uma obra que desafia, comove e deixa marcas, provando que as dores familiares, apesar de universais, nunca deixam de ser profundamente pessoais.

Filme: As Três Filhas
Diretor: Azazel Jacob
Ano: 2023
Gênero: Comédia/Drama
Avaliaçao: 9/10 1 1
★★★★★★★★★