Eventos desconcertantes moldam a vida em uma ilha isolada concebida por Martin McDonagh, onde o enredo de sua obra mais recente se desenrola. O panorama aéreo dessa terra — céu claro, colinas que se curvam ao mar tranquilo — sugere, à primeira vista, uma paisagem típica de comédias românticas como “P.S. Eu Te Amo” (2007), com cenários rústicos complementando as histórias de amor turbulento. Contudo, é rápido perceber que, além da geografia, o filme não partilha afinidades com a narrativa de Richard LaGravenese, optando por explorar profundamente as mitologias escandinava e celta. Apoiado por um roteiro magistral, McDonagh combina a trilha atmosférica de Carter Burwell e a fotografia impecável de Ben Davis para construir uma narrativa que pulsa de forma natural, conduzindo a plateia a uma reviravolta inesperada.
Na essência, o filme confronta os ecos da Guerra Civil Irlandesa (1922-1923), cujos estrondos distantes permeiam o cotidiano dos habitantes de Inisherin. Pádraic Súilleabháin, um humilde produtor de leite, vive uma rotina simples ao lado da irmã Siobhán e da burrinha Jenny, enquanto compartilha tardes regulares na taberna local com o amigo violinista Colm Doherty. No entanto, essa estabilidade desaba quando Colm decide cortar laços com Pádraic, justificando que não pode mais suportar sua banalidade e deseja dedicar o tempo restante a algo significativo. Embora inicialmente chocante, a escolha de Colm lança luz sobre uma narrativa que esmiúça a condição humana, os laços sociais e as fragilidades emocionais.
À medida que Pádraic insiste em reconectar-se com Colm, a história desliza para a tragédia, abordando com sutileza a violência intrínseca e a inclinação humana à barbárie. McDonagh revisita o argumento de “Três Anúncios para um Crime” (2017), enquanto Colin Farrell e Brendan Gleeson brilham novamente como em “In Bruges” (2008). Kerry Condon e Barry Keoghan destacam-se em papéis que ampliam a complexidade emocional da trama. Quando o conflito entre Pádraic e Colm atinge seu ápice, Dominic, vivido por Keoghan, assume um papel inesperado na vida do leiteiro, apenas para ser tragado por outra cadeia de infortúnios.
Nesse intrincado enredo, Pádraic torna-se, sem perceber, uma encarnação das banshees — espíritos atormentados que trazem destruição a quem cruza seu caminho ou busca abandoná-los. Momentos impactantes, como a revelação de abusos sofridos por Dominic, conduzem a reflexões dolorosas, enquanto a presença constante da Senhora McCormick, uma figura mística que pressagia tragédias, aponta para o destino inevitável de Inisherin. Sob essa alegoria, McDonagh traça um paralelo com a Irlanda, marcada por sua beleza estonteante e uma trágica inclinação à autodestruição.
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