Belchior tocou fundo na solidão da condição humana, antecipando em décadas o isolamento nosso de cada dia, retidos numa tela de smartphone. Estamos conectados com o mundo e chorando de solidão
Belchior pode ser um dilema para a Arte Brasileira assim como o “Gato de Schrödinger”. Desenvolvida pelo físico austríaco em 1935, a teoria cria uma equação matemática para comprovar um paradoxo. A ideia não é tão simples, mas Belchior também não era.
Na experiência do físico, um gato, junto com um frasco contendo veneno, é posto em uma caixa lacrada. Se um contador Geiger detectar radiação, o frasco é quebrado, liberando o veneno, que mata o gato. A mecânica quântica em que se baseia a experiência mental sugere que, depois de algum tempo, o gato estará simultaneamente vivo e morto. Mas, quando se olha para dentro da caixa, apenas se vê o gato ou vivo ou morto, não uma mistura de vivo e morto.
É verdade, não é fácil compreender a tal experiência, assim como é um desafio traduzir ou encaixar em algum estilo musical e social a passagem de Belchior pelo cenário musical brasileiro. Belchior está morto há mais de 10 anos, quando em 2007 decidiu abandonar não somente a carreira, como também a própria vida como ele vinha levando-a. E o fez literalmente: deixou carros e dívidas para trás, patrimônios e tudo o que a materialidade poderia lhe fincar os pés no chão.
Agora, fisicamente morto — e oficialmente morto, uma vez que a imprensa já o havia matado em pelo menos outras duas oportunidades — Belchior tem o poder de se tornar mais vivo do que nunca. Se sua obra se eterniza com o seu passamento aos 70 anos, é chegado o momento de uma redescoberta de sua música, de suas letras e, sobretudo, do pensamento social com caráter antropológico do artista. Belchior está, portanto, mais vivo e mais morto do nunca esteve antes.
Ao contrário dos demais artistas brasileiros, cujo posicionamento político inspira elogios ou críticas ferrenhas, ainda mais em tempos de rede social, Belchior cumpriu um papel raro, difícil e que se posiciona sempre longe dos holofotes: ele era o anarquista. Enquanto contemporâneos de sua arte se posicionavam contra o regime militar e outros ganhavam dinheiro com isto, tornando-se garotos propaganda do regime, Belchior usava a imprensa nos anos 1970 para criticar o sistema como um todo.
“Eu não faço música partidária. Eu sou a favor de um recrudescimento das qualidades individuais, diante de qualquer instituição e também da instituição política. Tem governo, eu sou contra. Tem partido, eu sou contra. Eu não quero pertencer a partido, igreja, escola, a nenhum grupo institucional. Se eu pertenço a algum é por estrita obrigação da qual eu não posso fugir. Nós, os homens desse tempo, estamos humilhados pelas injunções do poder. Eu não quero poder nenhum. O poder é corruptor. Por natureza, o poder é avarento”, declarou o cantor em entrevista à “Revista Música”, em 1979.
Outra característica deste outsider era a solidão. Pessoal e artisticamente não andava em bandos. Tentam inseri-lo num tal “grupo do Ceará” que também teria Geraldo Azevedo, Zé Ramalho (que é paraibano), Fagner e outros. Mas logo o compositor se desvencilhou do rótulo e da ideia de gangue. Era um anarquista até em sua forma mais primitiva.
Sob o ponto de vista poético, Belchior celebrou o desespero — o que era moda em 1976 — e o que se sobrepôs a isto, atravessando corações e mentes, por gerações e gerações. Nunca se furtou em traduzir em poesia, numa voz marcante com interpretação de quem quase declama ao invés de cantar, todos os recantos obscuros do desespero do homem de seu tempo.
Autobiográfica, sua obra retrata suas diversas fases de vida, com um tipo de nuance romanceada, mas não inventada e jamais amenizada. Não há lições de moral ou aprendizados fáceis na obra poética do cantor. Não há autoajuda, tampouco salvação, a bem da verdade. Relatou-se como o retirante nordestino solitário em “Fotografia 3×4”, na qual faz um desenho antropológico informal, mas preciso, dos tempos de repressão militar do tempo da ditadura e ainda encontra um jeito de mostrar a repressão do preconceito: “Em cada esquina que eu passava um guarda me parava, pedia os meus documentos e depois sorria examinando o 3×4 da fotografia. E estranhando o nome do lugar de onde eu vinha”. Como observador e tradutor do cotidiano, é digno de comparação com a obra igualmente narrativa e antropológica de Lima Barreto.
Foi um apaixonado, um indignado, um resignado, um canalha, um sedutor. Mas, principalmente, tocou fundo na solidão da condição humana, antecipando em décadas o isolamento nosso de cada dia, retidos numa tela de smartphone. Estamos conectados com o mundo e chorando de solidão.
Estamos na luta para ganhar dinheiro e mesmo assim compartilhando cards em redes sociais indicando que o amor é maior que qualquer emprego. Mas só compartilhamos nos intervalos da correria do trabalho, ou dos trabalhos. A isto, também narrou Belchior, em “Paralelas”: “E no escritório em que eu trabalho e fico rico, quanto mais eu multiplico, diminui o meu amor”.
Como um bom observador da própria condição inserida no seio familiar, tão semelhante a tantos jovens, adolescentes, de gerações que vieram depois dele, detalhou o cotidiano de uma família que pode ser a sua, a minha e era a dele, na canção “Na Hora do Almoço”. “No centro da sala, diante da mesa, no fundo do prato, comida e tristeza. A gente se olha, se toca e se cala e se desentende no instante em que fala.”
Morto em condições aparentemente serenas, traduzia a magna-opus de Dante, “A Divina Comédia”. Ele, com a sua “Divina Comédia Humana”, foi o próprio tradutor da sensação mais recorrente e inerente de homens e mulheres do mundo “como é comum de seu tempo”: a angústia diante de tudo e perante o Nada que é o fato de existirmos.
O cândido desespero de Belchior jamais deixou de ser moda, seja em 1976, seja nos dias de hoje. Seja por causa da política nacional, pelas dores de amor, ou mesmo pela inefável angústia de quem se pergunta: o que eu estou fazendo aqui?
Assim como o metafísico gato de Schrödinger, Belchior vive a cada dia mais, agora que está morto.