Montaigne e seus Ensaios: a altiva modéstia de quem busca a si mesmo

Montaigne e seus Ensaios: a altiva modéstia de quem busca a si mesmo

Quantos autores, na vasta história da literatura, podem reivindicar a criação de um gênero? Talvez um punhado de nomes venha à mente, mas nenhum possui a força conceitual e a organicidade de Michel de Montaigne ao inaugurar o gênero que batizaria, simplesmente, como “ensaios”. Se há algo profundamente moderno — e, paradoxalmente, atemporal — em Montaigne, reside no fato de que ele inventou uma forma literária que celebra a dúvida, a digressão e o autoconhecimento. Antes dele, o tratado, a sistematização lógica e a argumentação inflexível monopolizavam a tradição filosófica europeia. Montaigne, em oposição a isso, ousou entregar ao mundo um novo espaço: o do pensamento que se forma no processo de escrevê-lo, no mergulho em si mesmo.

Diferente de obras cuja coerência e pretensão repousam sobre a erudição acabada, os “Ensaios” permitem o encontro de uma mente que se testa — um homem que questiona suas certezas e, com isso, revela as profundezas de uma subjetividade até então inexplorada no Ocidente. “Que sei eu?” foi sua máxima e sua bússola, afastando-o dos dogmas da Escolástica para fundar uma escrita que não tem fim, porque o próprio autor — como todo ser humano — está em perpétua transformação. Ele não é apenas o inventor de um gênero; ele é, de certo modo, o inventor da modernidade enquanto experiência fragmentada e inconclusa.

Montaigne
Os Ensaios de Montaigne (Penguin-Companhia, 616 páginas, tradução de Rosa Freire Aguiar)

Erich Auerbach capturou com precisão essa grandeza montaigniana ao observar que qualquer pessoa que leia os “Ensaios” terá a impressão de que Montaigne está conversando diretamente com ela. Pouco importa se lemos suas linhas no século 16 ou no 21; ele permanece íntimo e próximo, pois atravessa o tempo e faz o papel de amigo e interlocutor. Essa impressão não nasce apenas do conteúdo, mas do estilo da prosa montaigniana — fluida, pessoal e viva, como se o autor estivesse continuamente ajustando suas palavras à medida que seu pensamento se desenvolve. Montaigne nos dá a sensação de que está presente, não como autoridade distante, mas como igual. Escrever, para ele, é mais um encontro consigo mesmo e com o leitor do que a exibição de erudição.

Importa aqui um detalhe técnico de alcance filosófico: o livro “Os Ensaios” foi terminado, mas não acabado. Esta é uma distinção fundamental. Montaigne seguiu revisitando, editando e acrescentando aos textos até a véspera de sua morte, em 1592. Como se a obra fosse uma extensão viva de si mesmo, ele rejeita a ideia de finitude que acompanhava seus contemporâneos renascentistas. Diferentemente dos mestres da simetria clássica, ele abraça a incompletude como marca da verdade humana. O pensamento, tal como a vida, está em perpétua reescrita.

Os “Ensaios” são um espelho do homem e do tempo. O “acabado”, aqui, seria artificial. Sua genialidade repousa sobre a crença na fragmentação. E não é exatamente essa uma das características mais modernas da literatura? O seu legado ecoará, séculos adiante, na interioridade de Proust, no fluxo de consciência de Virginia Woolf ou até mesmo no jornalismo literário de contemporâneos. Ele abriu a porta da literatura ao humano em suas hesitações, ao ego como campo de investigação e reflexão.

Antes de avançarmos sobre a importância da obra, é preciso interrogar: quem foi Montaigne? Michel Eyquem de Montaigne nasceu em 1533, no seio de uma família nobre, no sudoeste da França, em Périgord. Educado desde a infância em um ambiente pautado por valores humanistas, ele experimentou uma formação que misturava a tradição clássica com o rigor do Renascimento. Filho de um comerciante e senhor do castelo de Montaigne, foi orientado desde cedo ao latim — a língua culta por excelência no período e a chave que lhe permitiria acessar as fontes gregas e romanas sem a mediação de traduções.

O latim foi, de fato, a primeira língua de Montaigne. Seu pai contratou um preceptor alemão que somente se comunicava com o jovem Michel nessa língua, tornando-a, como afirma ele mesmo, “uma língua materna e viva para mim”. Esse fato é crucial para compreendermos sua capacidade intelectual. Enquanto muitos de seus contemporâneos travavam uma batalha árdua com as letras latinas, Montaigne encontrou ali uma pátria linguística natural, onde se formaram os contornos de sua percepção do mundo. Ele trazia consigo as raízes do classicismo greco-romano com uma desenvoltura quase instintiva, somando-as ao humanismo cristão de seu tempo.

Essa familiaridade com a cultura clássica fez dele, além de filósofo e literato, um verdadeiro elo entre a Antiguidade e a Modernidade. Nele, vemos a voz de Sêneca e Cícero dialogando com a inquietude de um tempo que ainda não sabia que era moderno. Ele buscou na sabedoria dos antigos não respostas absolutas, mas a clareza e a humildade para formular melhores perguntas.

Após estudos na Universidade de Bordeaux, Montaigne assumiu cargos políticos e judiciais. Durante anos, atuou como magistrado, exercendo suas funções com seriedade, embora distante dos jogos de poder. Aos 38 anos, decidiu abandonar a vida pública para se dedicar inteiramente à escrita e à contemplação. Seu retiro na biblioteca do castelo de Montaigne marcou o início de uma jornada intelectual que resultaria nos três volumes de seus “Ensaios”, publicados em 1580 e revisados até sua morte.

É interessante notar como sua decisão pelo recolhimento tem um caráter filosófico: Montaigne se isola do mundo não para negá-lo, mas para reencontrá-lo em si mesmo. A influência dos estoicos é particularmente visível. À maneira de Marco Aurélio, Montaigne dialoga consigo mesmo e convida seus leitores a buscar, no exercício do autoconhecimento, o equilíbrio para a alma. Sua biblioteca transforma-se em um cosmos onde o sujeito encontra as chaves para compreender a existência.

Retomando as palavras de Erich Auerbach, a força dos “Ensaios” está em sua humanidade. Montaigne oferece ao leitor sua própria vida como material de reflexão: seus medos, contradições, vaidades e limitações são temas recorrentes, explorados com honesta minúcia. Tal ousadia era inédita. Sua proposta é menos um tratado filosófico e mais uma confissão secular, fruto da observação rigorosa e bem-humorada de si mesmo e da condição humana.

Montaigne aproxima-se do mais radical espírito humanista: para conhecer o outro, é preciso conhecer a si mesmo. Esse diálogo interior desagua no leitor como uma confidência. “Eu mesmo sou a matéria do meu livro”, ele escreve, com uma sinceridade desarmante. E é essa matéria — a substância do humano em sua imperfeição — que atravessa os séculos e se mantém vívida, acessível e pulsante.

O que também impressiona é seu ceticismo lúcido e prudente. Diferentemente de Descartes, que procurava fundar o pensamento na certeza do “eu penso, logo existo”, Montaigne afirma: “eu não sei”. Sua dúvida é fruto de uma observação aguda e tolerante, capaz de perceber que a verdade é multifacetada.

Os “Ensaios” não são apenas um marco da literatura, mas também um manifesto da liberdade do pensamento individual. Montaigne derruba dogmas, questiona convicções e antecipa debates morais que marcariam a filosofia moderna. Sua reflexão transcende o tempo porque, como todo grande clássico, nos ensina mais sobre nós mesmos do que qualquer doutrina poderia.

Com ele, aprendemos que a filosofia não se limita a sistemas ou verdades grandiosas; ela pode ser uma busca íntima, aberta e, sobretudo, humana. No encontro com seus textos, vemos que o ato de pensar é, em si, um gesto revolucionário, perpétuo e incompleto — como a própria vida.

Montaigne inaugurou o ensaio como gênero literário não por um ato de criação deliberada, mas como um processo natural de sua inquietação intelectual. Ao contrário dos filósofos sistemáticos, que buscavam circunscrever o mundo em conceitos definitivos, ele oferece ao leitor uma forma experimental de pensar: um laboratório mental onde o texto reflete a mente em movimento. O gênero nasce da necessidade do autor de testar suas reflexões no ato de escrevê-las. Se “ensaiar” em francês significa tentar, testar, buscar, os “Essais” — como o próprio título sugere — são uma ode à dúvida ativa, ao pensamento em constante desenvolvimento.

Escrever sobre si mesmo é o mais nobre empreendimento filosófico que a obra realiza. Ao transformar sua própria experiência em objeto de reflexão, Montaigne eleva o ato de pensar sobre a vida a um horizonte universal. Como ele mesmo escreve: “Chaque homme porte la forme entière de l’humaine condition” (“Cada homem carrega em si toda a forma da condição humana”). Essa ideia, aparentemente simples, abre um campo infinito para a reflexão: na especificidade de si mesmo, Montaigne encontra a humanidade em sua totalidade. Esse mergulho interior, longe de ser egocêntrico, é um ato generoso de desvendamento.

As influências que moldaram Montaigne ajudam a entender por que ele é, ao mesmo tempo, tão moderno e tão fiel às raízes clássicas do pensamento europeu. Sócrates é uma figura central em seus escritos, e sua admiração pelo questionamento permanente está presente na máxima cética “Que sais-je?” (“O que sei eu?”). De Sócrates, Montaigne aprende a praticar uma filosofia em primeira pessoa, guiada pela humildade intelectual. De Plutarco, herda o gosto pela biografia moral e pelas histórias exemplares; de Sêneca, os fundamentos do estoicismo que permeiam toda a sua obra: a consciência da finitude humana, o desprezo pelas vaidades e a busca pela serenidade diante do caos.

Mas há mais do que estoicismo em sua filosofia eclética. O epicurismo também encontra espaço em seus textos, sobretudo no elogio aos prazeres simples e naturais da vida. Ele escreve em um mundo convulsionado por guerras religiosas e instabilidade política; em meio a isso, resiste por meio da moderação e do cultivo da alma. Essa flexibilidade é o que o torna um pensador inclassificável, acima das escolas: ele ensaia, experimenta e recusa a rigidez.

O conceito de “ensaio” representa não apenas um estilo, mas um método. Ensaiar é colocar-se em constante aprimoramento; é nunca alcançar uma conclusão definitiva porque a verdade — se é que ela existe — está além do alcance humano. Sua filosofia não é sistemática porque o próprio homem, objeto de suas reflexões, está em permanente transformação. Montaigne traduz esse movimento em cada texto: começando em um ponto, desviando-se, retomando, contradizendo-se e retornando. Não se trata de produzir certezas, mas de aprender com o caminho.

Por isso, o livro é também uma obra performática. O leitor não encontra ali uma filosofia concluída, mas um espetáculo vivo do pensamento em ação. Montaigne, como um ator em cena, encena suas ideias, expõe suas dúvidas e projeta ao leitor o processo interior de seu próprio ensaio. Assim como a vida, a obra não segue uma linha reta ou lógica final. O movimento é o que importa.

O que busca Montaigne ao escrever? Em essência, busca a si mesmo. No prefácio dos “Ensaios”, ele afirma: “Je n’ai pas plus fait mon livre que mon livre ne m’a fait” (“Eu não fiz mais o meu livro do que meu livro me fez a mim”). Para ele, a literatura é um instrumento de autoconhecimento. Busca-se, não para atingir uma verdade universal, mas para compreender a si mesmo e aceitar suas contradições. O homem, para ele, não busca a perfeição; ele aprende a relativizar. O ato de escrever torna-se uma espécie de autorretrato mental, consciente de sua imperfeição.

Esse relativismo é fundamental para Montaigne, pois não nega que existam verdades, mas afirma que o homem é incapaz de apreendê-las completamente. A máxima estoica ressoa mais uma vez: dominar-se a si mesmo é o ápice da sabedoria. Desse modo, ele se distancia do pedantismo e da arrogância dogmática, ao afirmar que o conhecimento é sempre parcial, condicionado pelas circunstâncias. Mais sábio é aquele que, como ele, olha para dentro e admite suas limitações.

A aversão ao pedantismo é outra característica essencial em Montaigne. Ele despreza o acúmulo vazio de conhecimento que não transforma o homem. Não busca exibir erudição, mas sim torná-la útil. Seus textos revelam um conhecimento profundo dos autores clássicos, mas o fazem com leveza, como uma conversa entre iguais. Como observa o crítico francês Pierre Villey: “Montaigne puise dans les anciens non pas pour les imiter, mais pour les vivre.” (“Montaigne busca nos antigos não para imitá-los, mas para vivê-los”).

Estruturalmente, “Os Ensaios” dividem-se em três volumes. O primeiro apresenta uma escrita mais espontânea e pessoal, uma espécie de experiência inaugural da forma ensaística. No segundo, o autor aprofunda sua reflexão, incorporando leituras mais sistemáticas e um olhar ainda mais aguçado sobre a condição humana. Já no terceiro volume, escrito nos últimos anos de sua vida, Montaigne se revela plenamente como o pensador maduro que relativiza até a própria existência, celebrando a mortalidade como parte inseparável do ser humano. Esse percurso é um convite à evolução do leitor.

A marca principal de seus textos é a liberdade, tanto de estilo quanto de pensamento. A fragmentação das ideias e a ausência de um eixo fixo não indicam falta de método, mas uma fidelidade radical à natureza do pensamento humano, que nunca é linear.

O impacto da obra na posteridade não pode ser subestimado. Montaigne antecede o sujeito moderno em sua busca pela interioridade e em seu desprezo pelo dogmatismo. Em Rousseau, Nietzsche ou mesmo em autores contemporâneos como Borges, sua sombra ainda se projeta. A voz que testou a si mesma inspirou outros a fazerem o mesmo.

Ao longo de milhares de páginas, Montaigne nos oferece o retrato de um homem e, ao mesmo tempo, da humanidade em sua totalidade. Sua obra é inacabada porque o humano é inacabado. E é essa qualidade que a mantém eternamente viva.

Montaigne inventou o ensaio, mas criou algo ainda maior: uma maneira de pensar e de viver o pensamento. Ao mergulhar na própria condição, ele descobriu o que há de universal em nós e nos deixou o convite mais instigante da filosofia moderna: “Conhece-te a ti mesmo, mas não busques certezas, pois a grandeza reside na dúvida.”

Concluir algo sobre Montaigne é tarefa impossível, pois encerrar seria contradizer seu espírito. Que saibamos seguir seu exemplo: questionar, duvidar, tentar. Como ele mesmo escreve, “C’est un absolu que de s’arrêter” (“É um absoluto parar”) — e “Os Ensaios”, como a vida, não se detêm.

Carlos Augusto Silva

É professor de Literatura e História da Arte. Licenciado em Letras e História, é bacharel em Literatura e Especialista em Estética e História da Arte. Mestre em Estudos Literários, cursa o doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada na USP. É autor dos livros “Dicionário Proust”, “Proust e a História” e “Opção Crítica”.