Será que um lugar isolado, tomado por canibais, poderia servir de cenário para um drama que mescla desejo, sobrevivência e crítica social? É nessa provocação que “Amores Canibais”, longa de Ana Lily Amirpour, aposta todas as fichas. À primeira vista, o filme apresenta um ambiente hostil no meio de um deserto texano, onde indivíduos vistos como indesejáveis são despejados sem qualquer resquício de humanidade. Todavia, o que realmente se sobressai é a forma engenhosa com que a diretora subverte elementos de gêneros consagrados — do western ao terror, passando por flertes pós-apocalípticos — para desenhar uma narrativa que oscila entre a fantasia romântica, a brutalidade gráfica e um senso de humor anormalmente sarcástico.
Essa prisão a céu aberto, conhecida como Bad Batch, é vasta e sem limites visíveis, marcada por colinas de areia, restos de construções e um calor causticante. Não há guardas em torres nem cercas eletrificadas, mas isso não significa menos opressão: na prática, quem é enviado para lá perde seu vínculo com qualquer proteção estatal. Entre ruínas, carros enferrujados e carrinhos de golfe tão corroídos que parecem prestes a desabar, diferentes grupos lutam pela posse de água, mantimentos e corpos — afinal, o canibalismo se torna o recurso mais extremo de subsistência. Logo no começo, Arlen (Suki Waterhouse) é apresentada ao pior desse ambiente quando é capturada e mutilada por um bando que vê nas pessoas recém-chegadas uma espécie de “fauna” a ser explorada. A trilha sonora escolhida para esse momento, destoando por completo do horror, escancara a mistura de deboche e violência que permeia a obra.
A protagonista sobrevive ao ataque e escapa, mas não sem cicatrizes físicas e emocionais. Presa em um ciclo de vingança e descrença, Arlen vaga pelas imediações, topando com uma figura sombria que atende pelo apelido de Miami Man (Jason Momoa). Ele, por sua vez, é um homem marcado pela voracidade desse mundo, alguém que procura manter certo código de honra enquanto cumpre tarefas que, em ambientes civilizados, seriam inaceitáveis. A direção de Amirpour destaca Momoa em planos prolongados, quase hipnóticos, ressaltando tanto seu físico imponente quanto a dualidade entre a ferocidade e a possível capacidade de empatia. Em diversos trechos, a cineasta investe em um ritmo lento, quase sonhador, acentuando a tensão antes que qualquer ato violento efetivamente aconteça.
Apesar dos paralelos com as inovações de Quentin Tarantino — principalmente na forma de unir referências pop, trilha sonora inesperada e impactos cruéis —, Amirpour escolhe um caminho próprio ao criar um universo que também dialoga com Kathryn Bigelow. A diretora recorre a transições sutis na edição para enfatizar não só a hostilidade do deserto, mas também o teor místico que paira na atmosfera, como se o calor provocasse delírios ou revelasse algo ancestral. Nesse ponto, fica claro o cuidado com a estética: cada tomada ressalta a poeira, a luminosidade ofuscante e as sombras angustiantes, conferindo ao cenário um ar de pesadelo febril. A cineasta ainda brinca com o tom de cultura de academia ao retratar habitantes obcecados por corpos robustos e exibições de força, reforçando o contraste entre beleza idealizada e práticas canibais.
No meio desse confronto de “tribos” surge uma figura peculiar: The Dream (Keanu Reeves), líder carismático que governa um lugar batizado de Comfort. Sob sua jurisdição, a comunidade tenta se afastar das barbáries do deserto, mas revela falhas igualmente preocupantes. The Dream se vale de discursos vazios sobre liberdade e esperança, enquanto distribui substâncias alucinógenas como se fossem bênçãos divinas. Ele cercou-se de mulheres grávidas portando armas de grosso calibre, como se a imagem materna estivesse a serviço de um regime tão autoritário quanto qualquer outro ali. Essa hipocrisia, travestida de carisma e poder, ressalta que até os renegados podem reproduzir estruturas de controle quando se julgam donos de algum “sonho” maior.
Arlen, em sua busca por vingança e identidade, acaba envolvendo-se com uma criança ligada a Miami Man. A tensão cresce, pois ela não só matou a parceira desse homem como também raptou a menina que o motivava a continuar vivo. Em condições normais, a rivalidade não permitiria nenhuma aproximação, mas o enredo vai conduzindo os dois para uma convergência ambígua, sugerindo que no caos há espaço até para estranhas alianças. Cria-se, então, um dilema moral: pode existir afeto genuíno quando se ignoram crimes recíprocos? Ao mesmo tempo em que Amirpour explora o fascínio incongruente que Arlen e Miami Man sentem um pelo outro, o roteiro deixa de lado questões importantes, como o trauma que ela carrega ao ter seus membros arrancados. Esse vazio sentimental aponta para um desejo de estilo acima de toda e qualquer profundidade psicológica.
A fluidez narrativa pode ser irregular, porém, a diretora emprega com habilidade o silêncio e a lentidão, criando pausas que intensificam a aridez do espaço. Boa parte do impacto vem de personagens que praticamente não falam, como o andarilho interpretado por Jim Carrey, que, com expressões cômicas e melancólicas, fornece pequenos instantes de alívio ou estranhamento. Giovanni Ribisi encarna um vagabundo falastrão que rompe a ausência de diálogos, mas pouco adiciona ao desenvolvimento da história. Ainda assim, esses pequenos encontros contribuem para a atmosfera de um mundo em colapso, onde a normalidade se perde entre os destroços e a lei do mais forte assume lugar de destaque.
Esse hibridismo, que mescla distopia futurista, terror sanguinário, drama existencial e pitadas de comédia estranha, flerta com a proposta de tornar “Amores Canibais” um fenômeno cult instantâneo. A própria Amirpour descreve sua criação como uma fusão de referências incomuns, citando “Mad Max 2”, “Dirty Dancing”, “O Topo”, “A Garota de Rosa Shocking”, entre outros. O risco, entretanto, é cair em um preciosismo que exalta a forma em detrimento do conteúdo: há momentos em que o filme enfatiza tanto sua estranheza que pode cansar o espectador menos disposto a aceitar a montagem fragmentada ou as cenas que não desembocam em nada conclusivo. Nesses intervalos, a busca por um ar sofisticado pode sabotar o potencial de imersão.
Ainda assim, não se pode negar a ousadia de Amirpour ao apresentar paisagens que se tornam personagens à parte. O deserto surge quase como um juiz imparcial, punindo todos com o mesmo sol abrasador e a mesma poeira sufocante, enquanto a trilha sonora recai em canções emblemáticas do pop, escolhidas de forma a desconcertar o público. Essa justaposição de sonoridades suaves e atos macabros gera um contraste poderoso, mas pode deixar a impressão de que a diretora insiste em provocar gratuitamente. Em contrapartida, cada uma dessas escolhas musicais reflete a convicção de que o grotesco e o divertido podem coexistir, se abraçados pela direção de arte e pelo propósito narrativo.
No fim das contas, “Amores Canibais” oferece uma experiência que, embora não agrade aos que buscam uma coerência convencional, propõe reflexões sobre como comunidades marginais acabam reproduzindo desigualdades e privilégios. Arlen, Miami Man e The Dream simbolizam diferentes facetas de um mesmo problema: a forma como pessoas descartadas ou com aspirações de poder se relacionam quando não há regras. Se a conclusão dá ao casal central um destino envolto em ingenuidade, esse fechamento ambíguo pode ser visto como uma metáfora da incapacidade de evoluir em um universo cuja base é a eliminação do “outro”. É quase como se Amirpour sugerisse que, em uma sociedade que transforma os fracos em banquete, não há escapatória para relacionamentos genuínos ou justiça real.
Embora possam existir ressalvas quanto às escolhas estéticas ou à superficialidade emocional, o longa acerta ao provocar, ao suscitar um incômodo que permanece depois dos créditos finais. Ao apontar que até mesmo os banidos da civilização erigem muros e classificações sociais, o roteiro cutuca a ferida política de fronteiras e exclusões sistemáticas. No espectro do cinema contemporâneo, “Amores Canibais” demonstra que Ana Lily Amirpour não tem receio de arriscar: ora evidenciando o grotesco, ora abraçando o absurdo, a diretora constrói uma distopia romântica que ultrapassa convenções de gênero e convida o espectador a encarar a monstruosidade latente em cada um de nós. Com isso, consolida-se como uma voz singular, abrindo caminho para futuros projetos que, espera-se, possam equilibrar ainda mais a intensidade estética com a dimensão humana de seus personagens.
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